Alumbramento perdido

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  • Paulo Sales

Publicado em 1 de março de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Lawrence Ferlinghetti morreu na semana passada, aos 101 anos. Foi um dos poetas que mais me encantaram na juventude. Como homenagem, peguei na estante o livro Vida Sem Fim, antologia dos seus melhores poemas, e li quase todo. Parecia que tinha entrado numa máquina do tempo. Mesmo passados mais de 20 anos sem abrir aquelas páginas, reconheci de imediato poemas repletos de pulsão e sentimento, como Autobiografia, Estou esperando e Cachorro.

Então me dei conta do quanto esses poemas influenciaram os que eu mesmo escrevi naquele período. Poemas que fui abandonando com o tempo e que permanecem guardados como relíquias sem valor estético, apenas afetivo. Hoje só recorro aos versos vez ou outra, quando o texto em prosa se revela insuficiente para expressar o que eu sinto. Mas grande parte da minha produção juvenil foi construída em forma de poesia. Quase tudo em versos livres, que muitas vezes se derramavam por páginas e mais páginas, sem qualquer busca por concisão ou aprimoramento.

Quando os leio hoje, me soam ingênuos e sem brilho, porém francos e corajosos. Eles deixam entrever as entranhas do jovem que fui, tão afeito a silêncios, impregnado de uma dor da qual desconhecia a origem. Esse conjunto de poemas deu origem a três livros. Nenhum deles publicado, nenhum deles conhecido para além do meu restrito círculo de amizades, que tratava aqueles textos como animais raros que obviamente eles não eram.

Sem que me desse conta, a poesia foi aos poucos se apartando de mim também como leitor. Não foi uma escolha deliberada, e sim um afastamento natural, como ocorre com amigos de juventude que deixamos de encontrar. Uma pena, porque na maior parte dos meus anos de formação poesia e prosa conviveram lado a lado, como variações de um mesmo alumbramento, embora tenha desde sempre me identificado mais com os romancistas.

Hoje é raro eu comprar novos livros de poemas, apesar de ontem mesmo ter adquirido um pela internet: Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop. Provavelmente por culpa de um grande amigo, que me mandou A Arte de Perder, poema belíssimo da autora que não conhecia. Mas, voltando ao assunto, o que aconteceu para que deixasse de devorar versos como se fossem nacos de foie gras?

Será que minha mente, exaurida de tanta brutalidade e insensatez e sempre às voltas com preocupações e compromissos cotidianos, não se permite mais um pouco de lirismo? Será que perdi a conexão com uma forma de literatura que parece extirpada diretamente do que temos de mais íntimo e obscuro? É possível. Ou talvez todo aquele desassossego que havia em mim tenha enfim repousado, e os versos não sejam mais necessários para compreendê-lo ou mitigá-lo.

De qualquer forma não me dou por vencido. Às vezes pego um volume na estante e o folheio. Não consigo entender Pound (embora adore o poema E assim em Nínive), mas me encantam Gullar, Brecht, Eliot, Bandeira, Pessoa, Quintana, Whitman, Plath, Ginsberg, Dylan Thomas. Amo até mesmo um poeta bissexto como Borges, celebrado por seus contos. Algumas coisas de Lorca, outras de Rimbaud. Os poemas em prosa de Baudelaire (que há décadas não leio), os poemas pantaneiros de Manoel de Barros. É um universo tão fascinante que não se pode cometer o desatino de ignorá-lo.