Ameaçada de morte, 1ª mulher prefeita de Cachoeira teme pela família, mas afirma: 'não vou renunciar'

Eliana Gonzaga venceu a eleição em novembro de 2020. Desde então, dois correligionários foram mortos

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  • Bruno Wendel

Publicado em 21 de abril de 2021 às 17:05

- Atualizado há um ano

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De ex-feirante a primeira mulher, e negra, eleita prefeita da cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano. Eliana Gonzaga de Jesus (Republicanos) diz tirar força dos ancestrais para vencer mais uma disputa: se manter viva durante o seu mandato. Depois de se eleger em novembro do ano passado derrotando Fernando Pereira, o Tato (PSD), empresário forte da região que tentava se reeleger pela quarta vez, a atual prefeita vem sendo ameaçada de morte e já teve dois correligionários executados após à sua posse. A primeira vítima foi Ivan Passos, morto em 17 de novembro, dois dias após a vitória de Eliana. A segunda vítima foi foi Georlando Silva, que era coordenador de obras da prefeitura, morto no mês passado, com 10 tiros. Além disso, a prefeita já recebeu ligações onde ouvia barulhos de tiros do outro lado da linha e foi seguida por homens em uma moto, que fugiram após intervenção da polícia.   De acordo com a gestora, as ameaças e os assassinatos tem o objetivo a renuncia de Eliana do cargo. No entanto, nascida e criada no bairro de Ipitanga, a prefeita filha de Cachoeira mostra confiança para seguir à frente da terra de bravos guerreiros, que deu o primeiro grito de Independência da Bahia e, consequentemente do Brasil. E é por isso, a sua ancestralidade à credencia à luta. “Eu não vou renunciar. Eu não tenho medo. Junto com os meus ancestrais, aqui também pulsa a veia sindical, e muito forte e não sou covarde. A veia do sindicalista não recua”, disse ela, que já foi líder sindical e vereadora na cidade dois mandados (2009/2016).  Casada com o vereador reeleito Josmar Barbosa (Republicanos), a prefeita terá um novo encontro com o secretário da Segurança Pública, Ricardo Cesar Mandarino Barretto, na SSP para tratar da própria segurança, além da proteção da família, apoiadores e também da cidade, que atualmente tem o policiamento reforçado pela SSP, diante dos últimos acontecimentos.  Eliana é a primeira mulher prefeita de Cachoeira (Foto: Reprodução) A prefeita de Cachoeira conversou com o CORREIO na manhã desta quarta-feira (21) e falou sobre as intimidações, os ataques racistas, a investigação, os assassinatos dos aliados entre outras coisas.  

CORREIO: Como surgiram as ameaças? Eliana: Começaram com a morte de um dos militantes nossos. Ivan Passos, morto dois dias após a nossa vitória, no dia 17 de novembro do passado. No dia 2 de dezembro, recebi uma ligação no celular, onde apenas se escutava uma rajada de metralhadora. Quando fui à delegacia para registrar um boletim, a delegada disse claramente que se tratava de uma ameaça de morte, uma intimidação direta. Depois começou a circular na cidade que havia uma lista com os nomes de pessoas ligadas a mim marcadas para morrer. A lista tinha o nome do meu marido, filhos, secretários e apoiadores. Alguns destes, eu convenci a saírem da cidade. Eles foram para a Região Metropolitana de Salvador. Mas alguns ficaram, como Georlando Silva, também militante nosso, que foi assassinado no dia 07 de março. Diante de toda essa situação, registrei mais um boletim de ocorrência. 

- Como a senhora encara as mortes dos dois militantes?  Eliana: Ivan, nosso aliado, tombou em frente à delegacia com 10 tiros, coincidentemente o número que representa o nosso partido (O Republicanos). Nesse mesmo dia, a cidade ficou toda ficou apavorada, pois tínhamos acabado de ganhar a eleição. Georlando foi executado com 19 tiros, todos na face. O IML (Instituto Médico Legal) teve que enrolar o rosto, porque ficou desfigurado. Foi preciso imprimir uma foto dele e sobrepor o rosto enfaixado para o velório. Esses ataques foram muito agressivos, atitudes de covardes. O Georlando tinha um canal no Youtube e dizia que era ameaçado de morte. Algumas pessoas, diga-se de passagem, uma minoria, diz que tudo isso acaba se eu renunciar. Mas não vou! Nada disse vai nos fazer desistir. Vou levar o meu mandato até o fim.  

- Tudo isso vem acontecendo após eleição. A senhora acredita que isso está relacionado de alguma forma com uma questão política?Eliana: Já estive com o secretário de Segurança Pública e tudo está sendo investigado pelo Serviço de Inteligência da Polícia Civil. Mas acho muito estranho essas ameaças e esses crimes com pessoas ligadas a nossa campanha. Não posso afirmar que essas ameaças e mortes estão ligadas a um grupo político, mas o povo da cidade diz que sim, e que suspostamente está ligado ao resultado da eleição, mas eu não posso atribuir a grupo político, nem a ninguém, já que não tenho provas. O meu mandato é democrático, uma gestão de diálogo, sem nenhuma opressão. Agora, são essas pessoas que estão frustradas, que fizeram tudo isso, estão com algum transtorno mental, desequilíbrio emocional. 

- Muito antes das ameaças, a senhora sofreu ataques racistas nas redes sociais durante a eleição, insultos como "macaca" e variações. A senhora acredita que as duas coisas estão interligadas? Eliana: Já prestei queixa, não queria mexer nisso, não quero acusar ninguém. Cabe à polícia o papel de investigação e esses a fatos virão à público e com provas. Não podemos acusar ninguém sem provas, mas as pessoas que estavam fazendo isso, faziam campanha contra mim. Não posso afirmar quem mandou ou se foi iniciativa própria de alguém. Cabe aí a polícia agir. 

 - O que mudou na sua vida depois de virar prefeita?Eliana: Apesar de ter sido vereadora duas vezes, estar prefeita é uma responsabilidade muito grande, principalmente para gerir um município numa situação de pandemia, com diversas ações para combater a proliferação da covid-19, com a implantação do comitê covid, vacinação, drive thru, mas tem também esse clima de terror, de ameaças, que acaba atingido também a minha vida pessoal, abalando a estrutura da aminha família. A gente não precisaria passar por tudo isso. Qual o crime que cometemos? Disputar a eleição e ganhar a eleição? Foi vontade do povo.  

 - Diante de tudo isso, a senhora tem medo?Eliana: A veia sindical é pulsante, a veia sindical não é covarde, é de luta, somos da luta. A veia do sindicalista não recua, avança. Sou a primeira mulher, e negra, eleita prefeita da cidade. Eu tenho herança de guerreiros no sangue e não vou recuar. Mas temo pela vida da minha família e dos meus aliados, já morreram dois logo após a eleição.

- A senhora já passou por alguma situação como esta antes? Eliana: Tenho mais de 30 anos de movimento sindical, de enfrentamento, lutas, conquistas, mas nunca tinha passado por uma situação como esta. Um ataque de uma forma pessoal e política desse tipo. Muito diferente do lado sindical. Ataques pessoais, ameaça a mim, a minha família e às pessoas próximas a mim. Nunca aconteceu, nem quando fui vereadora por dois mandados.   

 - O que precisou mudar na sua rotina por conta das ameaças?Eliana: Eu e minha família não estamos mais dormindo em Cachoeira por causa dessa intranquilidade, mas logo estarei de volta. Mas vou trabalhar todos os dias, fazendo esse bate e volta. Estou com escolta da Polícia Militar e da Guarda Municipal para onde vou na cidade. Porém, estou tomando alguns cuidados, por recomendação da própria SSP. Por enquanto não estou fazendo aquele contato pessoal como o povo, como ir à feira livre, ir à zona rural, ter aquele contato mais próximo para ouvir os anseios da população, nem despachando com os secretários dentro das secretárias como gostaria, mas a coragem supera, o terror, o medo e a covardia. Vamos continuar, não vamos nos calar, não vou renunciar, não vou decepcionar o nosso posso.  

- Com a escolta policial, a senhora tem se sentido mais segurança para andar na cidade?Eliana: Recentemente acompanhei a campanha de vacinação no drive thru, quando dois homens numa moto passaram por mim e mais à frente voltaram e pararam a moto atrás de uma árvore e passaram a me observar. Foi o momento que estavam mais afastadas dos policiais, que notaram que os homens me observavam, gesticulando entre si, e acompanhando os meus passos com os olhares. Ao perceberam que tinham sido notados, eles fugiram na moto.

- Se sente amparada pela população?Eliana: Tenho recebido diversas mensagens escritas de apoio, palavras de conforto de todos os modos e de vários grupos da cidade. As igrejas evangélicas estão orando por mim e por todos em minha volta, os terreiros de candomblé, a comunidade espírita, os católicos também se solidarizaram com a gente, o pessoal ligado às causas do movimento negro, do LGBTQIA+, das mulheres. A nossa ancestralidade nos dá força, nosso povo cachoeirense nos fortalece. Recebi apoio também de instituições, como o núcleo de direitos humanos da Assembleia Legislativa de Bahia (Alaba) e Câmera de Deputados Federias, em Brasília. Eliana recebeu apoio de entidades como a UPB e grupos ligados ao movimento negro e social Entidades divulgam apoio à prefeita

Nesta quarta (21), a União dos Municípios da Bahia divulgou nota, assinada pelo presidente da entidade, Zé Cocá, onde se solidariza com a prefeita de Cachoeira e manifesta repúdio às ameaças. “A escolha da população é soberana e precisa ser respeitada. Ameaças, violência e perseguições jogam contra a democracia e precisam ser freadas com poder de polícia. Nós prefeitos, a Diretoria da UPB, estamos solidários a Eliana e ela pode contar com nosso apoio para fazer um grande mandato para o povo de Cachoeira”, disse o presidente Zé Cocá. A entidade afirma que acionará a SSP sobre a necessidade de apuração dos fatos e culpados.

Além disso, diversas entidades do movimento negro e do movimento social da Bahia, como o Movimento Negro Unificado, Ilê  Aiye, Unegro, CTB, UEB e Nova Frente Negra Brasileira, assinaram um manifesto em solidariedade à Eliana e cobrando dos órgãos, como SSP, Ministério Público Estadual, Defensoria Pública, poder legislativo estadual e municipal, o compromisso de defesa da vida da prefeita, da vice Cristina e do mandato.