Anne Frank e o horror através dos tempos

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  • Paulo Sales

Publicado em 24 de junho de 2019 às 05:00

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Anne Frank faria 90 anos no último dia 12. Uma idade perfeitamente possível de se alcançar. Seu pai, Otto, único sobrevivente da família, chegou aos 91. Fico imaginando o quanto aquela garota curiosa se espantaria com as mudanças ocorridas no mundo após 1945, quando ela o deixou. Seria, creio, um espanto positivo. Em primeiro lugar, ela saberia que a barbárie em estado bruto que presenciou, e da qual foi vítima, sairia derrotada de uma guerra que custou 80 milhões de vidas. Mas viriam outras novidades: a televisão, a ida do homem à lua, a internet, a evolução da medicina, os estados de bem-estar social.

Anne Frank não viu nada disso. Morreu antes de completar 16 anos no campo de concentração de Bergen-Belsen. Seu diário, encontrado pelo pai após o fim da guerra, tornou-se um best-seller lido por diferentes gerações. A imagem do seu rosto sorridente, conhecida no mundo todo, virou até um mural de Eduardo Kobra em Amsterdã. É lá também que fica o Museu de Anne Frank, à beira de um canal, num bairro charmoso e aprazível, em torno do qual pessoas de todas as idades, muitas alegres e descontraídas, se espremem em filas gigantescas.

Já a experiência de visitar a casa, onde ela e sua família se esconderam, não tem nada de alegre ou descontraída. É o palco de uma aberração. Eles ficaram confinados num anexo junto ao sótão, um espaço exíguo e claustrofóbico, atemorizados por uma possível descoberta que afinal aconteceu. Ali foi escrito o diário. Entrar naquele espaço é de certa forma violar o sofrimento alheio. Testemunhamos algo de muito doloroso, perverso. A negação da vida.

Ao contrário de outras meninas da sua idade, Anne Frank foi salva do oblívio por sua escrita. Mas de que adiantam a fama, os milhões de exemplares vendidos ou mesmo o fato de ela ter se tornado um ícone pop? São um consolo inútil. Anne morreu provavelmente de tifo, esgotada e faminta, depois de desperdiçar anos preciosos de sua adolescência num sótão insalubre. Sim, seu diário é um exemplo de perseverança e um atestado da abjeção nazista. Mas na essência ela foi só mais uma vida preciosa arrastada por essa avalanche de som e fúria que atende pelo nome de História.

O mundo hoje é melhor do que na época de Anne Frank. É realmente? Talvez fosse mais adequado afirmar que há vários mundos coabitando um mesmo 2019. Nele, uma Holanda avançada e pacífica convive com um país onde 65 mil pessoas são assassinadas por ano. Há poucos meses, no Rio de Janeiro, um garoto ainda mais novo do que Anne foi executado pela polícia. Sua pergunta para a mãe, antes de morrer, foi: “Ele não viu que eu estava com roupa de escola?”. Como é possível tamanha atrocidade ser tão rotineira? Aqui o horror é perene, quase um traço congênito. E não haverá diário, muito menos um museu, para celebrar essa vida encerrada tão antes da hora.