Anos de chumbo: contaminados contam como vivem hoje em Santo Amaro

Alguns dos 3 mil santamarenses com sequelas de chumbo e cádmio relatam lutas contra doenças e denunciam descaso

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  • Alexandre Lyrio

  • Yasmin Garrido

Publicado em 29 de setembro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

É só bater de porta em porta, especialmente na periferia de Santo Amaro, no Recôncavo baiano. A cada 50 ou 100 metros você vai encontrar uma vítima ou, no mínimo, alguém que conte a história de um parente doente ou morto por sequelas da contaminação por chumbo.

Ao circular pela cidade mais atingida por este metal pesado no mundo, o CORREIO ouviu dezenas de relatos entre os 3 mil santamarenses que nas últimas décadas sofreram com diversos tipos de doenças, além de depoimentos emocionados de familiares que perderam os mais de mil entes queridos.

Com as pernas arqueadas, dores nos ossos e dificuldade de locomoção, José Gomes Ribeiro, 77 anos, nos acompanhou na busca por - como ele próprio - vítimas do chumbo.“Pode entrar no carro de reportagem, Seu Zeca! Vamos de carro!”. “Não! eu vou a pé. Eu não morri ainda porque não fico parado. Os que ficaram na cama já morreram”, acredita.Quando entrou para o quadro de funcionários da fábrica, ele já sabia que todos estavam ficando doentes. Trabalhou na Cobrac durante 15 anos como mecânico industrial e o filho era encarregado do forno. Zeca Ribeiro mostra exame: 35 mg de chumbo por litro de sangue (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Ao sair da empresa, Zeca tinha altos índices de chumbo e cádmio no organismo. O exame que realizou no Centro Estadual de Referência em Saúde do Trabalhador (Cesat), em Salvador, indicou 35 mg de chumbo por litro de sangue. Atualmente, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, o nível de chumbo no sangue deve ser zero.

“Só que em Santo Amaro não tinha nada e eu precisava trabalhar. Meus problemas ósseos começaram quando eu ainda estava lá. Sentia muita dor nos dois joelhos. Meu filho a mesma coisa”, disse Zeca, sobre João Carlos Gomes Ribeiro, o filho. Problemas causados pelo chumbo (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) “Muitos dos mecânicos e soldadores, boa parte do pessoal que trabalhou comigo na fábrica e depois ficou sem atividade, a maioria já morreu”, insiste Zeca. O ex-funcionário se refere aos cerca de mil mortos estimados pela Associação das Vítimas por Contaminação por Chumbo, Mercúrio e Outros Elementos Químicos do Estado da Bahia (Avicca) como as vítimas fatais do chumbo. Com um bolo de certidões de óbito sempre à mão, Adailson Pereira, o Pelé, presidente da Avicca, reuniu dezenas de sequelados por chumbo na sede da associação.  Pelé mostra certidões de óbito (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)  Ele próprio é um deles. Trabalhou seis meses na fábrica e ultrapassou e muito o nível de chumbo de sangue encontrado, por exemplo, em Seu Zeca. Pelé chegou a 80 mg/l de chumbo e 19 mg/l de cádmio.

“Eu trabalhei seis meses, mas dentro de seis meses eu tive uma contaminação absurda. Acabou com a minha vida”, relata. “Acabar com a vida”, no caso, é ter neuropatia periférica e dor patelar grau 4 nos dois joelhos, o que já o levou à mesa de cirurgia por diversas vezes, além de manchas pelo corpo. O chumbo fez estrago no corpo de Pelé (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Pelé pede licença à equipe e, somente com o fotógrafo em uma sala, abaixa a roupa e mostra o estrago causado pelo chumbo no seu corpo. “Perdi a minha vida, mas vou continuar lutando. Não é possível que essa associação vai ser apenas uma colecionadora de certidões de óbito”. 

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Amputação   Talvez esses estragos só não sejam maiores que os de José Irailton dos Santos, conhecido como Peixe, de 72 anos. Trabalhou apenas dois meses na Cobrac e não aguentou. As marcas causadas por sequelas de chumbo são visíveis no corpo de José Irailton, Seu Peixe (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)  “Sentia um bolo na garganta toda vez que estava trabalhando, uma espécie de pigarro, muito enjoo, vômitos constantes”, lembra. O problema é que, em 60 dias de trabalho, Peixe trabalhou descalço, pisando sobre o minério. “Eu pisava no minério e achava geladinho, sem imaginar o perigo. Estava pisando em cima do veneno”.

Com o tempo, já fora da empresa, começou a sentir coceira e quentura nas pernas. Uma espécie de formigamento, como se alguma coisa o estivesse furando. “Foi um negócio rápido até minha perna toda escurecer”. Peixe teve que amputar a perna esquerda.“Quando eu cheguei no hospital de São Francisco do Conde, os exames deram que não tinha mais jeito. Aguardei dois meses até ser transferido para o HGE, onde amputei. O médico disse que estava tudo entupido. Na cabeça do dedo, o pó que saiu era preto, pura escória”. Dois meses pisando descalço na escória de chumbo levou Seu Peixe a amputar perna (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Tanto no Cesat quanto no Hospital São Rafael, em Salvador, os exames indicaram presença de chumbo no sangue de José Irailton, além de cádmio, alumínio e mercúrio. “A empresa não falava nada. Se falasse, não teria funcionário para trabalhar. Quem iria querer se envenenar? Se eu demoro lá, morria. O lugar que eu trabalhava, no forno, era muito quente. O chumbo vinha de lá fervendo e caía na forma”, contou Seu Peixe, que quase aceita R$1,8 mil de indenização.

“Quando me ofereceram eu ainda não tinha perdido a perna. O que era R$ 1,8 mil pra uma pessoa? Não aceitei. Só que depois perdi a perna e não pude mais trabalhar. O que eu desejo é receber uma indenização satisfatória para poder ter sáude, comprar remédios”, disse. “Vida nova eu não vou mais conseguir comprar, né?”. 

Adailton dos Santos, 62, foi um dos que trabalharam por mais tempo na Plumbum e, assim como os colegas, colecionou ao longo da vida dores e doenças. “Infelizmente, ninguém luta por nós. Não existe um centro médico, não temos condições de pagar exame particular. A gente trabalhou anos e anos numa bomba atômica que deixou todo mundo contaminado. O problema de um é de todos. A gente não tá pedindo nada que não seja nosso direito”, desabafou.

No próximo domingo (6), o CORREIO publicará a última reportagem da série sobre a contaminação por chumbo e outros metais pesados em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano.

Confira a linha do tempo da história do chumbo em Santo Amaro:1960: Cobrac é instalada em Santo Amaro - tentativa de industrializar a região. Subsidiária da empresa francesa Penarroya Oxide S.A produz lingotes de chumbo - que era extraído em mina na cidade de Boquira na Chapada Diamantina; 1970: Início de estudos sobre a suspeita de contaminação de moradores. Cobrac pede aumento de produção em 15 mil toneladas - governo do estado nega e sugere a transferência da empresa para o Centro Industrial de Aratu (CIA), o que não aconteceu; 1975: Os estudos detectaram que havia contaminação de crianças que moravam próximas ao Rio Subaé. Desde o início, a população santamarense reclamava de mal estar relacionado à fumaça; 1980: Construção de chaminé (mas filtro é instalado só em 1989). Estudo da Ufba constata: 96% das crianças que moravam em raio de 900 m da fábrica estavam contaminadas por chumbo.  Escória é fornecida para a prefeitura pavimentar cidade. Em 1989, empresa vendida ao Grupo Trevo e passa a se chamar Plumbum - com 100% de capital nacional; 1989: A Cobrac é vendida para o Grupo Trevo e passou a se chamar Plumbum, tendo 100% de capital nacional; 1990: Fechamento da fábrica, em 93, deixa desempregadas 1,2 mil pessoas. Novo estudo, em 98, atesta que, mesmo depois do fechamento, local onde ficava metalurgia e cidade continuavam fonte de exposição a chumbo; 2000: Zona urbana de Santo Amaro classificada como altamente contaminada por chumbo e outros metais. Ministério Público Federal ajuíza, em 2002,  ação civil pública pedindo que empresa,  União e Funasa respondam pelos danos; 2014: Primeira decisão da Justiça Federal condena a mineradora ao pagamento de indenização de 10% do faturamento bruto da empresa, que seria utilizado para custear a construção do centro de saúde destinado às vítimas de chumbo na cidade. A antiga Cobrac foi condenada ainda a realizar o cercamento da área da fábrica e instalar placas de sinalização, alertamento sobre os perigos da área. Também foram condenadas a União e a Funasa à construção do centro de saúde e realização de estudos para tratamento da população; 2019: Após recursos, nova decisão manteve a condenação anterior, mas embargos de declaração interpostos pelas três acusadas impedem que a sentença seja proferida. Neste momento, o processo aguarda o julgamento dos recursos.