Ao som de música do Ilê, corpo de Paulinho Camafeu é enterrado em Salvador

Compositor era autor de Que Bloco é Esse? e outros sucessos; ele faleceu aos 73 anos

Publicado em 30 de novembro de 2021 às 17:17

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Paula Fróes/CORREIO
. por Paula Fróes/CORREIO

O corpo do compositor Paulinho Camafeu foi sepultado na tarde desta terça-feira (30), no Cemitério Campo Santo, em Salvador. O artista faleceu ontem, aos 73 anos, dias depois de sofrer um infarto e ficar em coma induzido no Hospital do Subúrbio.

Paulinho foi autor de várias músicas marcantes na história da axé music, como "Ilê Aiyê (Que bloco é esse?)", "Fricote" e "Afoxé Badauê". Músicos do Ilê participaram do enterro nessa tarde. Enquanto o caixão era carregado, os presentes cantavam os versos de "Que Bloco é Esse?".

"Tudo que eu conheço da cultura eu devo a ele", disse a irmã de Paulinho, Nanci Santana. Toda a família do compositor estava bastante emocionada com a despedida. O produtor cultural e amigo Clarindo Silva lembrou com carinho do compositor. "Falar de Paulinho Camafeu é falar da música, da cultura, da arte, do amigo, do parceiro à luta pela recuperação do Centro Histórico", destacou. "Era um músico da cidade, viajou várias partes do mundo acompanhando Gil, compositor da melhor qualidade. Acho que a Bahia, o Brasil, a humanidade, está perdendo um grande homem. Espero que as gerações futuras possam perpetuar a memória dele".

O músico Tonho Matéria também foi ao enterro. "Conheci Paulinho quando tinha meus 14, 15 anos. Ele sempre foi uma peça principal da comunidade para apresentar o samba aos jovens e eu fui um desses que estava ali no momento certo, na hora certa, e captei aquela mensagem", disse. Com o tempo, eles também escreveram músicas juntos. "Paulinho deixa esse legado imenso. Até me preocupa um pouco com nossa cidade, nosso estado, quando a gente não consegue entender os valores. E quando ele se vai, esses valores se vão", disse. "Às vezes a gente busca um jeito de homenagear e isso precisa ser em vida, enquanto as pessoas estão ali", acrescentou, afirmando que sentia falta de algumas pessoas ali. "Artistas, bandas, grupos afros. Isso me choca um pouco". Ele lembra do amigo como uma pessoa feliz. "Era uma pessoa alegre, andava cantando, tudo que via escrevia música".

Nesta terça, o cantor Caetano Veloso lamentou a perda de Paulinho. "Ontem morreu Paulinho Camafeu. Como eu já disse uma vez, o autor de "Que bloco é esse" anunciou o Ilê Aiyê, que anunciava uma nova era. Foi o gesto de a Bahia autodeclarar-se negra. Isso se deu pelos versos de Paulinho. Nunca esqueceremos, nunca poderemos esquecer esse fato", escreveu o baiano nas redes sociais.

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Gilberto GIl também lembrou a importância do compositor. "Conheci Paulinho ainda muito jovem, no Mercado Modelo, quando voltei do exílio e frequentava muito o mercado. Com o passar do tempo ele se aproximou da música baiana, colaborou muito com o movimento musical baiano. Uma pessoa doce, gentil, um talento daqueles que brotam nas ruas de Salvador. Um belo percussionista com toda uma impregnação profunda da africanidade, da baianidade. Me habituei a chamá-lo de menino, então é um menino que se vai depois de uma vida muito bonita. Fica uma saudade enorme de Paulinho Camafeu".

Precursor Paulinho Camafeu foi um dos compositores mais importantes da música baiana das últimas décadas - que desaguou na axé music. Batizado de Paulo Vitor Bacelar, ele foi criado sob as influências do padrinho Camafeu de Oxóssi - outro personagem marcante da Velha Bahia - e herdou dele o sobrenome artístico.   

Em entrevista ao CORREIO em 2015, nos trinta anos da Axé, Gilberto Gil assim o definiu: “Paulinho conviveu com grandes cantores e compositores. Cresceu nesse ambiente, muito articulado nos bairros periféricos, absorvendo as culturas desses lugares, onde tinha tudo isso que a gente chama de cultura negra da Bahia. Foi um dos primeiros a manifestar o gosto pela divulgação dessa cultura, um grande músico, um grande pandeirista”. 

Este foi o ambiente inspirador para a canção Mundo Negro (Que Bloco é Esse?), que marcou o primeiro desfile do Ilê Aiyê, em 1975, e se tornou um clássico de várias gerações. Na tradução do impacto que o Movimento Black Power tive em nossas terras, Camafeu deu voz aos anseios de muitos jovens negros como ele.

Gravada por Gilberto Gil e depois pelo Rappa, Criolo e outros artistas, o hino segue forte e revigorado a cada Carnaval. Paulinho também foi o autor de outro sucesso instantâneo, o Fricote, parceria com Luiz Caldas que gerou o turbilhão chamado axé. “Minha parceria com Luiz Caldas é transcendental”, definiu Paulinho.

Antes de Fricote, ele já havia lançado Deboche, outro sucesso, gravado por Sarajane. Com Carlinhos Brown, fez Vale. E também teve canções nos repertórios de  Pepeu Gomes, Paulinho Boca, Timbalada, Fafá de Belém, Sergio Mendes e Cheiro de Amor. Com Chocolate da Bahia e Bell Marques compôs a famosa Menina do Cateretê. Outra parceria com Bell e Wadinho Marques é Meu Cabelo Duro é Assim.

Apesar das muitas canções de sucesso, Paulinho Camafeu não teve o reconhecimento que merecia e passou por momentos difíceis nos últimos anos - com muitas dificuldades financeiras, agravadas pelos problemas de saúde. Em mais de uma ocasião os amigos se juntaram para ajudá-lo, realizando shows onde suas composições tinham lugar de destaque, claro.

‘Ele inaugurou uma nova era na cidade’Ele era um menino que assistia Camafeu de Oxóssi no Mercado Modelo. Sua graça, sua inteligência, sua vivacidade fizeram dele uma figura única na Cidade do Salvador. Era um baiano autêntico e tinha se tornado o que se chamava de uma figura folclórica. De perto, sempre um encanto para o interlocutor, um estímulo à vida mental. Compondo ‘Que bloco é esse?’, canção que logo foi gravada por Gilberto Gil, Paulinho não apenas deu voz à reação espontânea - de surpresa, encantamento, curiosidade - que provocou nos soteropolitanos a aparição do Ilê Aiyê: ele inaugurou uma era nova na cidade. A autoimagem de Salvador mudou com o surgimento do Ilê - e a canção de Paulinho foi o poema-notícia desse acontecimento. É uma canção duplamente histórica: é a História contada no calor da hora e é ela mesma inesquecível. Artistas como O Rappa, Criolo, anos depois de Gil, retomaram seus versos e notas. É um marco que anunciou um marco. Salvador afirmando-se negra e temperando melhor o Brasil.

Caetano Veloso, em texto publicado no CORREIO em fevereiro de 2015