Aos 95 anos, morre artista plástico baiano Mario Cravo Jr.

Pioneiro da Arte Moderna na Bahia, ele era contemporâneo de Carybé, Rubens Valentin e Jorge Amado

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  • Da Redação

Publicado em 1 de agosto de 2018 às 11:31

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO
Confira algumas obras de Mario Cravo por Fotos: Acervo MCJ

“Baiano é um estado de espírito”, escreveu Jorge Amado. E, se esse estado pudesse ser representado, seria uma das obras de Mario Cravo Júnior. O artista plástico baiano morreu nesta quarta-feira (1º), em Salvador, aos 95 anos, mas deixa muito mais do que obras espalhadas por todos os cantos da cidade - entre elas esculturas, pinturas e monumentos. Um dos nomes mais importantes da arte moderna, o desenhista e ilustrador deixa um legado imaterial incalculável. A informação da morte foi confirmada ao CORREIO, às 11h30 desta quarta-feira (1º), pela assesssoria de comunicação do Hospital Tereza de Lisieux, onde ele estava internado. 

Em nota divulgada ainda pela manhã, o hospital informou que a morte ocorreu às 10h11, por falência múltipla de órgãos. "Toda a equipe médica do hospital, que não poupou esforços e deu todo o suporte para o seu restabelecimento, presta as mais sinceras condolências aos seus parentes, amigos e a todos os baianos", informou.

Autoridades e artistas lamentam a morte do artista baiano Mario Cravo Jr.

Considerado um dos mais importantes artistas plásticos da atualidade, tornou-se reconhecido internacionalmente por retratar, em sua obra, as tradições, crenças, costumes e os mitos do povo baiano.

O artista plástico, escultor, pintor e desenhista baiano estava internado no Hospital Tereza de Lisieux, na região do Itaigara. Mario deu entrada no hospital no mês passado, com um quadro de pneumonia. De acordo com Ivan Cravo, filho do artista, o pai estava consciente e sua situação era estável.

Mario Cravo trabalhou normalmente no Espaço Mario Cravo, em Pituaçu, até 16 de julho. Por lá, ele continuava produzindo suas obras, durante todas as manhãs.  (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) O  prefeito ACM Neto lamentou a morte do artista plástico. “O mundo perde, hoje, um dos maiores expoentes da arte moderna. Escultor, pintor, gravador e desenhista, Mário Cravo Júnior foi responsável por difundir a cultura produzida na Bahia com brilhantismo, ao lado de artistas como Carybé, Carlos Bastos, Jenner e Genaro de Carvalho. Desejo serenidade à família do artista neste momento de dor e luto”, disse ACM Neto através de nota divulgada pela imprensa.

Pioneiro Um dos pioneiros da Arte Moderna na Bahia e um dos grandes artistas brasileiros do século XX, Mario Cravo Jr. incorporou em seu trabalho bases arcaicas ligadas ao universo popular baiano, apresentando também um refinamento tecnológico. A simplificação formal dessas peças, nas quais o artista busca formas puras, despojadas e relacionadas ao mundo orgânico e natural, faz com que seus trabalhos apresentem afinidades com obras de Barbara Hepworth (1903-1975) e Henry Moore (1898-1986).

Em 2017, ele comemorou 70 anos de sua iniciação profissional. Tudo começou em 1947, quando ele expôs por duas vezes: Mario Cravo Júnior Expõe (no Edifício Oceania) e Mario Cravo Esculturas e Desenhos (na Associação de Cultura Brasil-Estados Unidos- ACBEU).

Amizade com Carybé Também era amigo próximo dos escritores Jorge Amado (1912 - 2001) e Zélia Gattai (1945-2011) e irmão de coração de Carybé (1911- 1997). Jorge Amado escreveu sobre ele, em 1961: "A madeira, a pedra, o ferro, na forja dos infernos, nas mãos do verdadeiro Exu da Bahia são a flor, a água, a poesia, a vida mais vivida e mais profunda". Mario Cravo Jr. e a esposa, Maria Lúcia Ferraz Cravo - com quem se casou em 1945 - na cremação de Zélia Gattai, em 2011, no Jardim da Saudade (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Poucos conheciam Carybé tão bem como o artista plástico baiano Mario Cravo: "Ele foi o colega com quem mais convivi, principalmente a partir da década de 50. Carybé foi o mais gentil dos homens, que nunca se referiu a ninguém de maneira hostil. Era o arquétipo da pessoa boa", definiu, em entrevista ao CORREIO, em 2014. 

Os dois se conheceram por intermédio do amigo Mirabeau Sampaio (1911- 1993), artista plástico baiano que conhecia Carybé e, entusiasmado com a produção artística do amigo, resolveu apresentá-lo a Mario Cravo. A afinidade pessoal e profissional foi imediata e os dois permaneceram amigos até a morte de Carybé, em 1997.  Nancy Bernabó, Jorge Amado, Carybé e Mario Cravo (Foto: Marina Silva/CORREIO) Passaram algumas noitadas nos bares do Rio Vermelho, mas não chegavam a ser boêmios, como disse Mario Cravo: “As pessoas pensam que artistas são boêmios inveterados, mas não é bem assim. É verdade que, às vezes, íamos aos bares, ‘tomávamos uns paus’ e dormíamos tarde. E gostávamos sim de uma cervejinha. Ou algo mais forte...”. 

Gostavam também de ir às rodas de capoeira em Salvador, especialmente as comandadas pelos mestres Waldemar, Traíra e Bugalho. Carybé e Mario se arriscavam até tocando berimbau. “Convivemos com os hábitos de uma cidade que as novas gerações, infelizmente, não conheceram”, lembrou, na entrevista.

A capoeira, inclusive, foi uma das manifestações populares que mais interessavam a Carybé e a Mario: rendeu muitos desenhos e esculturas. Mario Cravo junto ao seu Tocador de Berimbau, em sua antiga casa no Rio Vermelho, em Salvador, nos anos 1950. Mario Cravo era capoeirista e tocava berimbau (Foto: Acervo de Jonildo Bacelar) Além das farras e das rodas de capoeira que unia Carybé e Mario Cravo, havia também as viagens pela Bahia, começando pelo Recôncavo. Iam àquela região em busca de material que os auxiliasse nas criações artísticas. Depois, buscaram novos destinos e se encaminharam para outros estados do Nordeste, principalmente a região sertaneja. 

Algumas das paradas favoritas eram as feiras, onde compravam cerâmicas de artistas populares. Nas igrejas, buscavam ex-votos e santos abandonados pelas instituições que estavam deteriorados. 

E a amizade entre as famílias Cravo e Bernabó se estendeu pelas gerações seguintes. Ramiro, artista plástico e filho de Carybé, frequentava habitualmente o ateliê de Mario Cravo. Não foi à toa que também tornou-se escultor. E, junto com Ivan, um dos filhos de Mario Cravo, costumava promover sessões de mergulho e pescaria nas praias do Rio Vermelho. 

Chegaram a pescar um tubarão que, se não fosse a foto comprovando, muita gente duvidaria. O feito, justamente tratado como um ato de heroísmo na época, rendeu uma histórica foto, em que aparecem as duas famílias juntas, com direito até à presença de Jorge Amado e Zélia Gattai, que moravam no Rio Vemelho, perto da casa dos Cravo.  Mario Cravo (esquerda) e Carybé (direita) no dia que os filhos pescaram um tubarão (Foto: Marina Silva) Tantas histórias entre as famílias renderam um poema que Mario Cravo fez para o amigo: Cariba, Meu Irmão, escrito poucos dias após a morte de Carybé. Emocionado, Mario pega o livro para recitar, mas é interrompido pela assessora, preocupada porque a leitura pode deixá-lo triste. Indignado, o escultor-poeta retruca: “E daí se vou ficar triste?! Meu papel é negar a tristeza!” Aos 95 anos, Mario Cravo Jr. produzia com vigor (Andrew Kemp/Divulgação) Figura marcante Mario Cravo Júnior nasceu em 13 de abril de 1923, em Salvador. Ele começou a desenhar e fazer suas primeiras esculturas em 1938, quando tinha 15 anos. De 1945 a 1946, trabalhou no atelier do escultor baiano Pedro Ferreira, autor do majestoso conjunto escultórico A Visão de São Francisco, do altar-mor da Igreja de São Francisco.

Em 1945, casou-se com Maria Lúcia Ferraz Cravo (com quem teve quatro filhos) e estagiou no atelier do escultor Humberto Cozzo (1900-1981), no Rio de Janeiro. Já em 1947 realizou sua primeira exposição individual, com esculturas e gravuras, no Edifício Oceania, na Barra. Nesse ano, teve seu filho Mario Cravo Neto, que também se tornou escultor e fotógrafo, e morreu em 2009. Mario Cravo Neto e Mario Cravo Junior: "Ele era um personagem querido, tinha a força do encantamento e simpatia. Tinha uma alma absolutamente baiana e crioula", disse Cravo, em 2013, sobre o filho, o fotógrafo Mario Cravo Neto, que morreu em 2009, vítima de câncer de pele (Foto: Divulgação) Mario Cravo Junior e esposa, ao lado do filho Christian Cravo, em 2009, no último adeus à Mario Cravo Neto (Foto: Andréa Farias/CORREIO) Ainda no ano de 1947, seguiu para os EUA e trabalhou na Siracuse University, Estado de Nova York, como aluno especial do escultor Ivan Mestrovich. Depois, instalou seu atelier na Greenwich Village e fez uma exposição individual na Norlyst Gallery. Em 1949, de volta a capital baiana, Mario impulsionou o movimento de arte moderna, junto com outros artistas na Bahia, como Carlos Bastos, Genaro de Carvalho, Carybé, Jenner Augusto e Rubens Valentin.

Ainda em 1949, fez o monumento Cabeça de Ruy Barbosa, em bronze, para o Fórum de Salvador. Em 1950, instalou seu atelier no Rio Vermelho e passou a pesquisar fontes de arte popular e erudita, com aproveitamento de formas naturais. (Foto: Acervo MCJ) Quatro anos depois, em 1954, graduou-se em Belas Artes pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). No mesmo ano, tornou-se livre docente da cadeira de gravura da Escola de Belas Artes na Universidade Federal da Bahia, e passou a expor suas esculturas nas principais capitais do Brasil. O Tocador de Berimbau (1951) foi feito em madeira vinhático, com três metros de altura. Foi exposto no Belvedere da Sé, em Salvador, em 1955. Fazia parte do acervo do Hotel Nacional, em Brasília, quando foi leiloado em 2013 (Foto: Acervo de Jonildo Bacelar) Em 1955 realizou sua primeira grande exposição ao ar livre com esculturas em madeira e pedra sabão em Salvador. Em 1958, no mesmo local, uma outra com esculturas em ferro e, em 1959, na Praça da República em São Paulo. Sereia de Itapuã: feita em 1958 a arte é uma homenagem do autor aos pescadores e um marco de boas vindas aos turistas, além de representar Iemanjá. O monumento voltou a ser instalado na “pedra da Sereia”, local onde foi inicialmente estabelecida, sendo posteriormente substituída por uma e granito (Foto: Valter Pontes/Agecom) Mudou-se para a Alemanha, em 1964, onde fez várias exposições. Depois seguiu para os Estados Unidos, onde realizou três exposições individuais e fez palestras em doze universidades. Logo depois, em 1966, recebeu o título de Doutor em Belas Artes pela Escola de Belas Artes da Ufba.

Em 70, executou, para a Prefeitura do Salvador, a Fonte da Rampa do Mercado, em fibra de vidro com estrutura metálica e iluminação. A obra foi instalada no local do antigo Mercado Modelo, incendiado no ano anterior. (Foto: Mario Cravo Neto) Depois, mudou-se para o bairro da Federação e passou a esculpir com técnicas de resinas de poliéster e plásticos reforçados. Em 1973, fez os vitrais e objetos litúrgicos da Capela de N. S. da Assumpção do Hospital Português. De 1973 a 1980, retornou à técnica do metal batido, executando trabalhos de médio e grande porte para entidades privadas, municipais e estaduais. Dedicou atenção especial ao relacionamento da Escultura com Arquitetura e Paisagismo. Nesse meio tempo, construiu o Cristo Crucificado para a cidade de Vitória da Conquista, entre 1980 e 1983. Memorial a Clériston Andrade: obra de Mario Cravo, de 1983, tem 14 metros de altura; monumento passou por uma reforma, em 2015 (Foto: Arquivo MCJ e Arisson Marinho/CORREIO) Por volta de 1986, participou, pela quarta vez, do Comitê Internacional de Jerusalém e realizou uma exposição individual de desenhos em Zurique, na Suíça. A partir de 1994, iniciou o Espaço Cravo, em Pituaçu, mantido pelo Governo da Bahia, local onde trabalhava até hoje. Funciona como um parque de escultura ao ar livre e centro cultural para difusão das artes, integrado com a rede de ensino.

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Foi ele que fez, em 1996, a escultura de grande porte em inox (luminária) para o Parque do Museu de Arte Moderna do Solar do Unhão. Também foi o responsável por esculpir, em 1999, fez a Cruz Caída do Belvedere da Sé para a Prefeitura de Salvador. O famoso monumento da Cruz Caída está no Belvedere da Sé, próximo ao local onde estava o frontispício da Catedral demolida em 1933. Foi encomendado pela Prefeitura de Salvador e inaugurado em 29 de março de 1999, em comemoração aos 450 anos de fundação da Cidade. A construção, em aço inox, com três elementos acoplados, possui 12 metros de altura (Foto: Arquivo CORREIO) 70 anos de carreira O caprichoso catálogo da exposição Cravo – Cabeça de Tempo, em homenagem aos 70 anos de carreira do artista, que aconteceu entre outubro e novembro do ano passado na Paulo Darzé Galeria, acompanhava depoimentos de várias origens. O escultor Vauluizo Bezerra disse: “Talvez este sentimento que me refiro seja algo pessoal meu, mas insisto em afirmar, que por tudo que tentei descrever sobre o uso da arte por Mario Cravo Jr., como um instrumento socializador, com uma função de estender uma compreensão sobre as questões identitárias que lidamos, sobre seu interesse em elucidar formalmente as especificidades baianas com a universalidade apregoada pela modernidade, estas cabeças cumprem um rito de passagem de uma emancipação de uma arte moderna genuinamente baiana”.

O artista visual Caetano Dias completou: “O que afeta continua a nos tocar na obra de Mario Cravo. Desse modo nos dando sentido ao que nos faz povo em nossa cultura mestiçada em cada fragmento de madeira do antigo mercado de não mercadorias com “tanto negócio e tanto negociante”. Os fluxos de forças que sentimos e continuamos a sentir, como se essas figuras de proa lançassem mares de fogo para nos lembrar de que não podemos esquecer-nos da carne nem do escarnio. Acho que possivelmente a obra de arte tem o poder de confrontar a todos enquanto espelho para estranhamentos no seu reflexo”. Antônio Carlos Magalhães, Mario Cravo Júnior e Carybé  (Foto: Rogério Ferrari /Arquivo Correio)