Aos olhos do Caboclo: chegamos ao topo do Monumento ao 2 de Julho

O que vê lá de cima o nosso símbolo maior e por que ele dá um meio sorriso?

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 9 de junho de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr/CORREIO

Quantos de vocês já “choraram” aos pés do Caboclo? Quantos, ao passar pelo Campo Grande, rogaram pela cura da mãe doente, pela aprovação do filho no vestibular ou pelo time que está na zona de rebaixamento do Brasileirão? Agora, quantos de vocês ficaram lado a lado com essa entidade de bronze, quase um orixá da nossa independência? Nós não só ficamos aos seus pés (literalmente), como o encaramos, tocamos em sua cabeça e enxergamos através de seus olhos. 

Essa semana, em uma tarde de muito vento, reunimos coragem para subir os 26 metros da estrutura que foi montada para o restauro do monumento. O medo de escalar os andaimes simplesmente desapareceu quando chegamos perto dele. Descobrimos que o caboclo é pelo menos duas vezes maior que os seres humanos mais altos: tem quatro metros de altura e o semblante franzido, de quem tá enfiando a lança em um dragão.

Ao mesmo tempo, ele dá um meio sorriso. Afinal de contas, está matando Portugal, o colonizador simbolizado pela serpente com garras e asas. O caboclo tem grandes sobrancelhas e os dentes inferiores falhados.“Quando a gente vê a expressão daquele rosto tão de perto, a gente treme. Não dá pra saber se ele tá de cara feia ou sorrindo. Ele veio para acabar com o mal”, define o técnico em restauração Sérgio Luiz Santos, que integra a equipe de restauro. “O autor procurou dar um ar de realismo à obra”, confirma José Dirson Argolo, professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba), que coordena a restauração. O fato é que, de baixo, ninguém enxerga o Caboclo direito. Quem passa pelo Campo Grande e até mesmo quem faz pedidos àquele símbolo de nossa mestiçagem, sequer olha para o alto. 

Ninguém tem ideia de como são os traços do seu rosto brasileiro. Não conhecem seus olhos calmos e um pouco esbugalhados. O cabelo é grande e crespo. “No dia a dia, a gente anda olhando muito pra baixo. Da próxima vez que você passar aqui, olhe pra cima”, aconselha Sérgio. 

Do alto, o Caboclo vê tudo. Sua cabeça voltada para baixo. Tem um olho no dragão e outro em boa parte da cidade. Quase suspira de orgulho da capital onde a Independência do Brasil se deu de fato e não apenas de direito, como no Ipiranga.

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Vândalos e ladrões Dentro daquela cabeça com grande cocar, ele sabe que muito sangue foi derramado para que nos livrássemos do domínio português. Não tenha dúvida que o caboclo estava de olhos bem abertos quando cada um dos vândalos e ladrões arrancaram pedaços de bronze do monumento. 

Os roubos danificaram diversas peças. São partes de rabos de leões, asas de águias, pontas de lanças, ferramentas de índios, um remo de quatro metros que era segurado por um Netuno e a grande placa comemorativa pelo 80º ano da Independência. Mas tudo está sendo recuperado: do Caboclo, no topo, aos 8 candelabros que junto com um gradil arrodeam as alegorias. 

Oficialmente batizado de Monumento ao 2 de Julho, o Caboclo foi inaugurado em 1895, 72 anos depois da guerra da Independência da Bahia. O material é quase todo italiano: o Caboclo e demais alegorias são feitas em bronze e vieram de Roma; os candelabros e o gradil são de ferro fundido e são de Pistoia; e os mármores vieram de Carrara. As únicas peças brasileiras são os pedestais dos candelabros, feitos em granito de Itiúba. 

Ao redor da grande coluna de bronze, estão esculpidos os nomes de todos os heróis da Independência, de Maria Quitéria a General Labatut. “É o monumento mais alto e imponente do Norte e Nordeste”, afirma Dirson Argolo.

O autor da obra é o artista plástico italiano Carlo Nícoli, mas, nos pés do Caboclo, há uma assinatura indecifrável, que pode ser do próprio Nícoli ou de outro artista que ficou incumbido de esculpi-lo.  “É uma peça grandiosa. Estamos tentando chegar a essa definição”, completa Argolo.

 Riqueza   Depois de ficar lado ao lado com o Caboclo e encarar os detalhes do seu corpo, passamos a prestar mais atenção em tudo. Desde as pequenas tartarugas que sustentam os candelabros até as cobras de pedras vermelhas que vieram da Turquia e abraçam os recipientes onde os jacarés antes cuspiam água. “Eu me surpreendo a cada peça que pego pera restaurar. Isso aqui é história pura”, diz Sérgio.     

É a segunda vez que o Caboclo do Campo Grande passa por uma grande reforma. A primeira ocorreu no governo de Antônio Imbassahy, há 16 anos, em 2003. O trabalho durou quase um ano e também foi realizado sob o comando do professor Argolo. Os maiores danos, à época, estavam nos elementos líticos, ou seja, nas pedras em mármore. Agora, os danos são metálicos.

Reproduzir os pedaços de bronze é um trabalho de várias etapas. “Primeiro se faz a modelagem em argila para extrair a forma. Depois, a peça é feita em gesso, que servirá de base para uma réplica em resina. Enfim, vem a etapa final, quando ela é feita em bronze”, explica o artista plástico Jackson Pereira, o Jack Salvador, que também integra a equipe.

Para a limpeza das alegorias corroídas pelo tempo, é usada uma técnica de microjateamento, com micro esferas de vidro, que lembram uma máquina de dentista. Além disso, são usados bisturis.   

A reforma começou no início de março. O projeto da Fundação Gregório de Matos, segundo o professor Dirson, chega perto de R$ 890 mil. Doze pessoas trabalham no restauro. A ideia é deixar metade do trabalho pronto para o 2 de Julho. A parte frontal, virada para o TCA, deve ser entregue antes da data magna da Bahia. A reforma está prevista para ser 100% concluída em setembro. É bom terminar mesmo. O Caboclo tá de olho!