Após 194 anos, grito por liberdade segue levando o povo às ruas

O desfile levou milhares pessoas às ruas de Salvador, no domingo

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  • Saulo Miguez

Publicado em 3 de julho de 2017 às 14:40

- Atualizado há um ano

O grito de libertação entoado pelas tropas brasileiras, que marcou o fim da dominação portuguesa, atravessou gerações, percorreu as ruas de Salvador e, pela 194ª vez, ecoou em alto e bom som no dia 2 de Julho. Se a soberania lusitana já não é mais um mal a ser combatido, ainda é extensa a lista de dragões que atormentam os bravos baianos de hoje. Gente comum, como eram os comandados do general Labatut, aflita pelo preconceito e incompreensão humana - senhores que teimam em não deixar a boa terra.

Assim como os soldados vitimados pelo chumbo e lâminas portuguesas no século XIX, o feminicídio oprime as mulheres baianas. A presença do agressor, no entanto, não é forte o suficiente para calá-las. Este ano, a estudante Érica Borges, 22 anos, fez questão de levar o seu grito para as ruas da cidade e clamar pela independência feminina.(Foto: Marina Silva/CORREIO) “As mulheres, sobretudo as mulheres negras, precisam se unir e resistir à violência a cada dia”, desabafa. Érica deixa claro que a resistência se afirma conforme as mulheres ocupam os espaços: “Quero ser médica não apenas para salvar vidas, mas também para levar a representação da mulher negra em um ambiente que ainda é predominantemente branco e masculino”.

Torcida pelo amorEm domingo de Independência e de clássico Ba-Vi, o casal Antonio Santos Silva, técnico metalúrgico, e Elivanete da Silva Macêdo, professora, queria mais motivos para comemorar. Ele, tricolor, ela, rubro-negra, não puderam assistir ao jogo juntos na arquibancada, tudo por conta da medida que impõe a torcida única em dia de clássico.

“Viemos gritar pela paz nos estádios. Se não fosse pela violência no futebol, iríamos ao Barradão”, lamenta Elivanete. Antonio conta que, há dez anos, vai ao desfile com a esposa e sempre leva ao percurso algum dragão para ser derrotado pela lança do caboclo: “Esse ano, a gente veio mostrar que dá pra viver em paz torcendo para times rivais”.(Foto: Marina Silva/CORREIO) Sobre a convivência do casal nos dias de jogo, Antonio garante que, independente do placar, o amor sempre sai vitorioso de campo. “Quando descobri que ela era Vitória, já estava apaixonado”, declara.

Preconceito em campoO futebol ainda se fez representado no 2 de Julho por atletas da Seleção Baiana de Amputados. O jogador Luciano Reis, 37, foi atropelado aos 11 enquanto brincava de bola na rua. Desde então, vem ocupando os meios de campo com apenas uma das pernas. Bem humorado, ele descreve quais setores ocupa no campo. “Além de teimoso, jogo de volante, meia e zagueiro”, diz.

Parar os adversários, no entanto, não é a principal dificuldade encontrada pelo atleta. “Infelizmente, a sociedade ainda olha o portador de necessidades especiais como um inútil. Somos deficientes, mas não incapazes. Nossa maior dificuldade é superar essa discriminação”, aponta.

O grito de liberdade do jogador não se restringe à causa dos deficientes físicos. Segundo ele, todas as minorias precisam de mais atenção do poder público. “Peço pelo fim do racismo, do preconceito como um todo. Temos que nos unir e olhar a Bahia como uma só”, completa Luciano.

Bahia de todas as coresPluralidade é a marca do processo de Independência da Bahia. O herói caboclo, em sua essência, representa essa mistura de gente que formou o povo brasileiro, como define o historiador Carlos Barros. “O grande herói da independência foi o povo. Escravos e muitas donas de casa deram sustentação à batalha se alistando e fornecendo mantimentos às tropas”, esclarece.

Este ano, o coletivo Família Pela Diversidade levou ao caminho da Independência a pauta de inclusão e respeito às diferenças das pessoas LGBTQIA+. Através de uma carta aberta entregue ao governador do estado, Rui Costa (PT), o coletivo cobrou a implantação do laboratório transexualizador do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes), que já está autorizado a funcionar desde setembro de 2016.(Foto: Marina Silva/CORREIO) Cecília Pinho, participante do coletivo, destaca a importância do espaço no processo de libertação das pessoas ainda vítimas do preconceito. “Queremos ajudar famílias que não sabem como lidar com filhos transexuais e assim vencer a transfobia”, afirma. Sobre a motivação para levar a luta do coletivo às ruas, Cecília pontua: “O combustível que nos move é o amor”.

Dia de renascer Amor, aliás, é elemento que transborda quando, em meio à multidão, surge um grupo de idosos das Obras Sociais Irmã Dulce. Há 23 anos, o Grupo Renascer reúne 280 pessoas que frequentam a instituição beneficente. O psicólogo e coordenador do grupo da Osid, Ubirajara da Silva, conta que os idosos foram às ruas dizer não à depressão, não à angústia e mandar uma mensagem de valorização da vida para as novas gerações.

Disposto, o grupo fez questão de fazer todo o trajeto da Lapinha até o Pelourinho. “Vir para o 2 de Julho é também uma forma de inclusão social. Tanto eles vêem pessoas novas, participam de uma festa importante como é essa celebração cívica, como também servem de exemplo para as pessoas verem que a longevidade é uma escolha de cada um”, diz Ubirajara.

Assim, a data magna da Bahia prova que o sangue, o suor e as lágrimas derramadas nos campos de batalha 194 anos atrás irrigou um sonho de liberdade que, ainda hoje, floresce em forma de sorrisos, cores, gritos e a certeza de que logo o Sol irá nascer.