Após limpar gavetas, Mandetta avisa que fica

Ministro da Saúde pede paz para enfrentar pandemia

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  • Da Redação

Publicado em 7 de abril de 2020 às 03:42

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Edu Andrade/Estadão Conteúdo

O clima era de despedida. Funcionários do Ministério da Saúde aguardavam para se solidarizar com o chefe. E foi com as gavetas já vazias que o ministro Luiz Henrique Mandetta disse na noite de ontem que continua no cargo. A declaração foi dada após o presidente Jair Bolsonaro cogitar substituí-lo. Mandetta entrou em choque com o presidente Jair Bolsonaro, em razão de orientações divergentes no enfrentamento ao novo coronavírus, que já matou 553 pessoas no país. 

Ontem, a tensão entre Mandetta e Bolsonaro chegou ao ápice, quando auxiliares do presidente informaram reservadamente a veículos de imprensa que o ministro seria demitido. Numa das reportagens, a informação é que o desligamento aconteceria ainda ontem, enquanto outras afirmavam que ainda não havia uma data determinada para a mudança de comando. O presidente se reuniu no almoço com o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), apontado como possível substituto de Mandetta. 

Em uma declaração no Ministério da Saúde, contrariando a determinação do governo de que as entrevistas deveriam ser realizadas no Palácio do Planalto, o ministro avisou que continua a fazer o seu trabalho com base na ciência. Reafirmou que a cloroquina só será autorizada pela equipe dele quando houver comprovação da eficácia do medicamento e pediu paz para trabalhar. Sem citar nomes, afirmou que tem tido sempre que enfrentar solavancos. “Hoje (ontem) foi um dia que rendeu muito pouco o trabalho. Ficaram com a cabeça avoada se eu iria permanecer, se eu iria sair. Gente aqui dentro limpando gavetas. Até as minhas gavetas. Nós vamos continuar, porque continuando a gente vai enfrentar nosso inimigo. O nosso inimigo tem nome e sobrenome, Covid-19”, disse Mandetta.O ministro destacou, ao lado de cinco secretários, que continua na pasta e afirmou que o trabalho de sua equipe começou nesta semana com “mais um solavanco”, sem citar diretamente a instabilidade no cargo. “Esperamos que a gente possa ter paz pra poder conduzir”, destacou. O ministro contou que nos últimos dias rejeitou pedidos da imprensa para tentar acalmar a situação. 

Críticas   Mandetta também reclamou de críticas que não são construtivas. “Gostamos da crítica construtiva, o que temos muita dificuldade é quando em determinadas situações, por determinadas impressões, as críticas não vêm no sentido de construir, mas que vêm para trazer dificuldade no ambiente de trabalho. Isso, não preciso traduzir, vocês sabem, tem sido uma constante”, disse o ministro.

Mandetta afirmou ainda  que o trabalho da pasta é técnico, e que ele é apenas o porta-voz disso. Ele assinalou que a pasta procurou dar voz à ciência e aos especialistas.

Ao falar que a pasta continua empenhada em apoiar pesquisas em busca de remédios, inclusive sobre cloroquina, Mandetta destacou, porém, que é preciso se basear em ciência e pediu que se esqueçam de “barulhos” relacionados ao assunto. “Ciência, ciência. Não vamos perder o foco: ciências, disciplina, planejamento, foco. Não perca. Esses barulhos que vêm ao lado, esquece”, pediu.

Ele reclamou do clima de incerteza que vem enfrentando, onde “não sabe ao certo como vai ser o próximo dia, a próxima semana”, mas garantiu em relação ao futuro que a saída dele, quando ocorrer, será junto com a equipe que montou em um ano e quatro meses de trabalho. 

“Vocês do Ministério da Saúde que saíram dos seus setores e ficaram aqui me esperando para fazer choro, cantos, bater panela, vocês vão todos trabalhar, que é o que vocês deveriam estar fazendo enquanto eu estava lá [no Planalto]. Não é para parar enquanto eu não falar para parar”, disse. “Aqui nós entramos juntos, nós estamos juntos e quando eu deixar o ministério, nós vamos colaborar muito para qualquer equipe que aqui venha, mas nós vamos sair juntos”, complementou.

O ministro agradeceu a alguns músicos que fizeram shows por meio de lives no fim de semana, segundo ele, por ajudarem a evitar as aglomerações.

Ele não respondeu questionamentos da imprensa, mas garantiu que vai trabalhar enquanto Bolsonaro permitir. “Nós também daremos o nosso sacrifício, nosso quinhão a mais de colaboração até quando formos importantes, nominados, fizermos alguma diferença, ou até quando o presidente entender que outra equipe, para outro lado, que não queira esse tipo de trabalho, que fale 'o caminho não é por aqui, é por ali', que encontre as pessoas certas, substitua”, avisou.

Durante o pronunciamento, Luiz Henrique  Mandetta repetiu frases como "lavoro, lavoro (trabalho, em italiano)", que usou como resposta às críticas de Bolsonaro na semana passada. Ele também voltou a dizer que permanecerá no cargo porque "um médico não abandona o paciente".

Fritura  Fritura é o nome que o meio político dá à movimentação em que um chefe busca enfraquecer o seu auxiliar, para forçar ou justificar uma demissão. Pois bem, ao que tudo indica, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) resolveu aumentar a temperatura do fogo e colocar o seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS), na frigideira. Entre boatos de demissão apresentados reservadamente por auxiliares presidenciais à imprensa, gestos e declarações explícitas de descontentamento, o presidente deixou claro nos últimos dias as diferenças entre eles. 

Ontem, enquanto Mandetta dizia numa reunião virtual com integrantes do Ministério Público Federal (MPF) que não sabia se permaneceria no governo, Bolsonaro estava reunido com dois nomes apontados como possíveis substitutos do ministro: o deputado federal e ex-ministro Osmar Terra (MDB-RS) e a imunologista Nise Yamaguchi. Foi a segunda vez em menos de uma semana que Bolsonaro reuniu-se com profissionais da área da Saúde sem a presença de seu ministro da área. 

No final da semana passada, Mandetta jantou com os presidentes do Senado Federal, Davi Alcolumbre (AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (RJ), ambos companheiros de partido do ministro. Detalhe, para jantar com o médico, os dois parlamentares rejeitaram o convite de Bolsonaro. 

No Twitter, #FicaMandetta chegou aos trend topics, em um conjunto de manifestações favoráveis que podem ter levado o presidente da República a repensar a demissão do ministro. O Palácio do Planalto não fez nenhum tipo de manifestação oficial sobre a permanência do ministro, mas o vice-presidente da República, Hamilton Mourão disse que Mandetta fica.  

Fato é que de um lado, o Brasil tem um ministro que diverge abertamente do presidente e um presidente que busca conselhos na área de saúde longe de seu auxiliar. Bolsonaro se reuniu com os dois médicos para tratar da possibilidade do uso da cloroquina em pacientes diagnosticados com o coronavírus. 

O uso da substância, indicada para casos de malária, é uma das controvérsias entre Bolsonaro e Mandetta. O presidente é um entusiasta da cloroquina, que estaria apresentando resultados promissores contra o coronavírus. O ministro, por sua vez, tem pedido cautela na prescrição do remédio, uma vez que ainda não há pesquisas conclusivas que comprovem sua eficácia contra o vírus.

Alcolumbre, Maia e Toffoli atuam por permanência Os presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, entraram no circuito para tentar impedir a demissão de Mandetta. Alcolumbre ligou para o ministro Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) dizendo que, caso a demissão fosse concretizada, a relação do governo com o Parlamento "ficaria muito difícil".

Já Toffoli, atuou em duas frentes: fez chegar ao Palácio do Planalto que a demissão de Mandetta, neste momento, seria muito mal recebida não só pela Corte, mas por diversos setores da sociedade; e trabalhou para que o ministro da Saúde também fizesse algum gesto de harmonia em relação ao presidente.

Auxiliares militares do governo também se manifestaram contra a demissão. Esses  auxiliares disseram ao presidente que "o pior" cenário seria demitir o ministro em meio à crise do coronavírus.

A bancada da Saúde no Congresso também manifestou unânime apoio ao ministro. Durante a reunião, quando já havia cedido aos apelos pela manutenção de Mandetta, Bolsonaro falou em "união" e disse que a hora é de se confiar "uns nos outros". 

Apoios   Entidades que entendem que as medidas adotadas pela pasta estão de acordo com as evidências e os critérios consolidados até o momento  se manifestaram em apoio do ministro. O presidente da Associação Paulista de Medicina, José Luiz Gomes do Amaral, disse que não conseguiria pensar em um motivo que justificasse a demissão.

“Nós estamos justamente preocupados com a ascensão da epidemia. Tudo vem sendo preparado, e muito bem preparado, bem articulado, para que pudéssemos mitigar este momento, nesta fase. Portanto não consigo imaginar uma razão, por menor que seja, que pudesse justificar [sua saída]”, disse. Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, concorda com Amaral. “Substituir a estrutura de comando em plena batalha fragilizaria o combate, com um custo elevado para a sociedade”. O Conselho Federal de Enfermagem também manifestou apoio ao ministro.

Ala ideológica indica médica para cargo no Planalto Após almoço com o presidente Jair Bolsonaro ontem, a médica imunologista Nise Yamaguchi confirmou, por meio da assessoria, que foi convidada para integrar o gabinete de crise do Planalto, criado para monitorar o avanço do novo coronavírus no Brasil. Ela disse que ainda avalia se vai aceitar a função.

Nise tem o apoio da ala ideológica do governo, comandada por Carlos Bolsonaro, para substituir Mandetta. Ela negou ter sido sondada para o cargo. Dra. Nise, como é conhecida, sugeriu a Bolsonaro a adoção do tratamento precoce com cloroquina em todo o Brasil e relatou experiências exitosas de uso do medicamento contra a Covid-19. De acordo com os relatos, o presidente se mostrou animado com o que ouviu. 

Nise Yamaguchi tem 40 anos dedicados à medicina, é imunologista e cancerologista de renome internacional. Médica do Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, Nise esteve na linha de frente em diversas batalhas pela saúde no Brasil e no mundo.  Assim como Bolsonaro, ela defende o chamado isolamento vertical – em que apenas os grupos de risco, como idosos e pessoas com alguma doença pré-existente – ficariam em casa, enquanto jovens voltariam ao trabalho e ir para a escola. Em entrevista recente a um portal de notícias, a médica disse que “com base em estudos clínicos realizados recentemente na França e em outros países, decidiu-se adotar um tratamento preventivo com essa população, oferecendo hidroxicloroquina nos primeiros dias da infecção” e que, “imediatamente percebeu-se que isso diminuía muito o risco do agravamento da doença”.

A imunologista disse na reunião com o presidente estar empenhada em replicar esse modelo no Brasil, adotando o uso da cloroquina em larga escala, para todas as pessoas que apresentarem os primeiros sintomas da doença. Estas pessoas receberiam o medicamento em casa.  A médica argumenta que a hidroxicloroquina, em associação com o antibiótico azitromicina, atua fortalecendo as células humanas e diminuindo a capacidade de replicação do vírus.

Perrengues de Bolsonaro com Mandetta

Humildade   Em entrevista na quinta-feira (2), Bolsonaro deu uma bronca pública no ministro. Ele disse que está faltando humildade e que ele está extrapolando. O presidente ressaltou que não pretende demiti-lo durante a crise de saúde, mas acrescentou que nenhum integrante de sua equipe é "indemissível".

Cloroquina    Sem convidar o ministro, o presidente se reuniu com um grupo de médicos para discutir sobre o uso da cloroquina no tratamento de pacientes graves de coronavírus. No encontro, segundo relatos, ele fez questão de dizer que tem uma opinião diferente da de Mandetta. O ministro tem pedido cautela quanto ao medicamento, já que não há comprovação científica da sua eficácia, embora alguns estudos apontem indícios nesse sentido.

Isolamento   Desde o final do mês passado, o presidente tem se posicionado contra medidas para garantir o isolamento social, enquanto o ministro tem feito uma defesa da iniciativa. No último pronunciamento que fez em cadeia nacional, Bolsonaro consultou pelo menos cinco ministros, mas, segundo relatos, não procurou Mandetta. Além disso, Bolsonaro contrariou recomendação da Saúde e participou de manifestações, circulou pelo comércio de Brasília e cumprimentou apoiadores em frente ao Alvorada.

Passeio em Brasília    A relação entre Bolsonaro e Mandetta se deteriorou de maneira mais acelerada após um passeio do presidente pela periferia de Brasília, contrariando as recomendações do Ministério da Saúde em relação ao isolamento social. O presidente se deixou filmar cumprimentando apoiadores com abraços e apertos de mão. O giro de Bolsonaro ocorreu um dia após Mandetta ter reforçado a importância do distanciamento social.

Outras polêmicas do presidente    CNH E RADARES  Em meados do ano passado, Bolsonaro encaminhou ao Congresso Nacional projeto de lei que dobra o limite de pontuação da CNH (Carteira Nacional de Habilitação), estende a validade da carteira de motorista e elimina multa para condutores que transportarem crianças fora de cadeirinhas de retenção. 

SEXUALIDADE  No Carnaval de 2019, após ser alvo de protestos de foliões, Bolsonaro publicou em sua conta do Twitter um vídeo em que um homem enfia o dedo no próprio ânus e recebe um jato de urina na nuca. No dia seguinte, após repercussão negativa, fez uma nova postagem, dessa vez perguntando: “O que é golden shower?”, nome da prática que divulgou. 

BANANAS DO VALE DO RIBEIRA   Barrar as bananas do Equador, na contramão das medidas liberais do ministro Paulo Guedes (Economia), parece ter sido outra prioridade de Bolsonaro. Em transmissão ao vivo em uma rede social, em março do ano passado, ele disse que iria "acabar com o fantasma" da importação da fruta, cultivada no Vale do Ribeira, no estado de São Paulo, onde foi criado.

NOVA CANCÚN  Em maio de 2019, Bolsonaro afirmou que revogaria decreto de preservação da Estação Ecológica de Tamoios, em Angra dos Reis. Durante um evento em Brasília, repetiu o argumento do potencial turístico da região. É o mesmo local onde o presidente tem uma casa e foi autuado por pesca ilegal.