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Tailane Muniz
Publicado em 2 de dezembro de 2019 às 15:21
- Atualizado há 2 anos
Os atabaques não vão parar, garante o babalorixá Anderson Argolo de Oxalá. Líder do terreiro Ilê Axé Alá Obatalandê, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador, o pai de santo lamenta que os tambores da casa estejam ameaçados. Conta com pesar o que ocorreu na manhã de domingo (1º), quando atendeu agentes da Secretaria de Serviços Públicos (Sesp) da cidade. >
Eles ameaçaram retornar com policiais caso o som dos atabaques fosse novamente ouvido pelos vizinhos – como no sábado (30), quando 500 pessoas participavam da festa do caboclo Sultão das Matas. "São todos evangélicos", comenta Anderson, durante uma reunião com líderes de entidades e movimento negro, nesta segunda-feira (2). Juntos, buscam uma retratação da prefeitura de Lauro de Freitas. >
Embora não tenha sofrido agressões físicas ou verbais, Anderson argumenta que algo do tipo não aconteceria num culto frequentado por homens brancos – a quem, reforça, “tem de todos o respeito” que o povo preto e de santo desconhecem. Conta ao CORREIO que os agentes estiveram no local durante o evento, mas só soube no dia seguinte. “Meus filhos não quiseram me preocupar, eram muitos convidados”. E a festa não parou, se estendeu até o dia seguinte. Grupo busca retratação de prefeitura (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) No domingo, contudo, o anfitrião da casa, onde moram 11 pessoas – e funciona há 12 anos no mesmo endereço, na região do Caji – recebeu e ouviu dos servidores que o barulho incomoda a vizinhança, responsável pela denúncia. “Eu quero ser tratado com respeito, como todos. Como o branco é. Eu não posso mais continuar abrindo cerimônias sem saber se vou terminar em paz”, acrescenta ele, ao lado de outras mães e filhos de santo.>
Por meio de nota [veja íntegra abaixo], o município informou que os fiscais estiveram no local e fizeram a aferição do som e valores de decibéis, "todos em desconformidade com a lei municipal nº 1.536/14". A prefeitura de Lauro de Freitas disse ainda que tem "total respeito e valorização a todas as celebrações das mais diversas denominações religiosas".>
Superintendente da Secretaria de Juventude, Igualdade Racial e Políticas Afirmativas (Seju), Paulo Aquino esteve no terreiro e disse que a secretaria presta solidariedade à casa. “Nós não compartilhamos com esse tipo de atitude e pretendo intermediar o contato da comunidade com a prefeita”, se limitou a dizer, em referência a Moema Gramacho (PT), gestora do município. Mães de santo, Mariah (à esquerda) e Amélia estavam no evento do babalorixá (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) ‘Casa de resistência’ O Ilê Axé Alá Obatalandê existe há 25 anos extensão em países da Europa, destaca o líder do terreiro, ao tratar como “uma pedância e petulância” a ameaça dos agentes da Sesp, que estavam acompanhados de funcionários da Secretaria de Planejamento, Desenvolvimento Urbano Sustentável e de Ordenamento do Uso do Solo (Sedur). Uma casa de resistência, diz ele.>
“Imagine você, ser um cidadão de bem, e ter um giroflex ligado na sua porta, tudo por causa da festa do meu caboclo. As pessoas precisam entender que o estado é laico e que há uma constituição a ser seguida neste sentido”, reafirma Anderson, que pretende procurar o Ministério Público Estadual (MP-BA) para que uma sindicância seja aberta para apurar o caso. Um episódio que, para ele, perpassa a intolerância religioso e, especialmente, o racismo. >
O pai de santo, que já foi vítima de tratamento racista por parte de policiais durante o lançamento de um livro, em 2010, conta que conversou com o comando da Polícia Militar de Lauro de Freitas. "O comandante me ligou, disse que não concorda com esse tipo de postura e disse para que eu ficasse tranquilo. Mas eu quero uma retratação. Somos negros, sim, mas sabemos do nosso direito". Mãe Amélia se emociona ao pedir união do povo negro: 'Estejamos unidos' (Foto: Mauro Akin Nassor/CORREIO) Coordenador do Coletivo de Entidades Negras (Cen), Marcos Rezende defende que a ação por parte dos fiscais do município precisa ser resolvida por uma ação sólida, e não “individualizada”. “Esse indivíduo representa a prefeitura. É importante que haja um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ou até mesmo que autoridades venham até o terreiro, porque é isso que ajuda a quebrar o preconceito”.>
A maneira como a situação foi conduzida pelos agentes dos órgãos é a principal crítica do presidente da Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (Fenabac), Jadilson Lopez. “Tudo é o jeito, a forma com que as pessoas falam. Um grande problema é a verticalização religiosa das secretarias e o que nós desejamos é um posicionamento consolidado”.>
‘União’ Uma das convidadas da festa de Sultão das Matas, a mãe de santo Mariah Kecy, 85 anos, do terreiro Raízes de Ayrá, em Camaçari, diz que o povo de santo “só quer paz”. Ter o direito de entrar e sair, tocar os atabaques e realizar os cultos, como em qualquer outra religião, reforça ela. Nas sete décadas de vida, afirma já ter vivido “muitas situações de intolerância e racismo”.>
“Mas eu não levo o desaforo para casa, vou atrás dos meus direitos, sim, sempre”, resume, ao lado do babalorixá do Ilê Axé Alá Obatalandê. Mariah também reforça a laicidade do Brasil.>
“O que determina o direito de liberdade de todos os cultos é a lei, está escrito, então basta de tanto desrespeito com a gente”. Ao lado de Mariah, o mesmo respeito é solicitado por Mãe Amélia de Oxalá, 70. O tremor do corpo traduz a oscilação da pressão arterial que, no dia do evento, saltou para 23.>
“Para mim, é uma alegria ver que os nossos estão aqui. Eu só quero pedir a união do nosso povo”, diz, até ser interrompida pelo próprio choro. Lágrimas que o babalorixá Anderson de Argolo classifica como "a dor de seus ancestrais". >
Veja íntegra da nota da Prefeitura de Lauro de Freiras"A fiscalização realizada pelas equipes de combate à poluição sonora no dia 30/11, às 23h30, aconteceu em razão de denúncia recebida pelo Centro Integrado de Mobilidade Urbana (CIMU), em 29/11, relatando som alto oriundo do Terreiro Ilê Axé Obatalandê, localizado no Bairro Recreio de Ipitanga. Esta é a primeira vez que o espaço é notificado.>
Durante a ação, ocorrida no sábado (30), os fiscais realizaram aferição do som e identificaram os seguintes valores em decibéis: 98.0 db(a), 79.6 db(a), 63.1 db(a) e 58.8 db(a), todos em desconformidade com a lei municipal nº 1.536/14, que estabelece o limite máximo de 55 dB em zonas predominantemente residenciais, como é o caso, no horário compreendido entre 7h da noite e 7h da manhã do dia seguinte. >
Na ocasião foi lavrada notificação de caráter educativo e preventivo, e solicitada a adequação dos limites do som. Em nenhum momento foi solicitada a interrupção da celebração. O espaço não foi multado por não ter sido identificada conduta reiterada em nova diligência realizada neste domingo (01). A nova visita ao local faz parte do procedimento padrão sempre que acontece uma denúncia de poluição sonora. >
A prefeitura informa ainda que a lei se aplica a todo e qualquer local, sejam estabelecimentos comerciais ou templos religiosos, e que neste último caso, nenhuma das ações é motivada com base em denominações religiosas, mas em atendimento às determinações da lei 1.536. >
Entre os meses de maio e novembro de 2019, foram realizadas 24 ações fiscalizatórias em templos religiosos de diversas denominações. Destas, cinco resultaram em processos administrativos, e nenhum dos casos está relacionado a templos de religiões de matriz africana. >
A Prefeitura de Lauro de Freitas reafirma total respeito e valorização a todas as celebrações das mais diversas denominações religiosas, ressalta posição contra toda e qualquer forma de preconceito e destaca que tem em sua estrutura administrativa uma Superintendência de Promoção da Igualdade Racial justamente para trabalhar as políticas públicas de prevenção ao racismo e a intolerância religiosa. Informa ainda que já autorizou abertura de processo administrativo para apurar como se deram os fatos ocorridos. ASCOM Prefeitura de Lauro de Freitas">