Após queda de 10% no número de católicos, santificação de Dulce é aposta para renovação

Confira entrevista com Dom Murilo Krieger

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  • Thais Borges

Publicado em 19 de maio de 2019 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arquivo CORREIO

Na primeira vez que a professora Helena Ramos, 38 anos, ouviu a voz de Irmã Dulce teve certeza que ela seria sua guia espiritual. Nascida em uma família evangélica ela se tornou católica graças à influência da vida da freira baiana e atualmente visita semanalmente a Igreja da Imaculada Conceição da Mãe de Deus (Santuário de Irmã Dulce). 

Helena está na contramão da tendência das pessoas que seguem a religião católica na Bahia. “Sou a única católica numa família de evangélicos, mas todos admiram a força de Irmã Dulce”, fala Helena que é moradora do bairro do Uruguai. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram entre 1991 e 2010  houve uma redução cerca de 950 mil baianos que se autodeclararam católicos. 

Para a biógrafa Rita Elisa Seda - que já escreveu livros como os da beata Nhá Chica e do mártir Franz de Castro Holzwarth  - explica que a canonização de Irmã Dulce é simbólica para o catolicismo no Brasil.  “O papa Francisco uma vez falou que o Brasil estava precisando de santos. A Irmã Dulce sempre foi um expoente dessa santidade mesmo quando estava viva. Do Rio Grande do Sul ao Amazonas todos sabem quem é ela. Se o papa escolheu Irmã Dulce nós temos que acreditar que foi uma escolha através do Espírito Santo. Hoje, nós precisamos de mais pessoas com ela no nosso país. Ter uma santa com DNA brasileiro alimenta a fé e aproxima as pessoas dos ideias que ela defendia”, destaca a biógrafa. 

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O arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, dom Murilo Krieger, acredita que a canonização de Dulce pode estimular uma nova vivência do catolicismo. “Na Igreja sempre tivemos consciência de que havia uma época em que qualquer pessoa se declarava católica, mesmo que não participasse de nada. Mais: normalmente, um terço dos que se dizem católicos são praticantes, fiéis; um terço participa ocasionalmente das celebrações, ritos e compromissos católicos; e um terço foi batizado, mas não tem prática religiosa nenhuma. Esse último grupo acaba sentindo atração para alguma outra religião e “deixa” a Igreja Católica. Nossa resposta só pode ser uma: ajudar o católico a conhecer as riquezas de sua fé, mesmo porque, ninguém ama o que não conhece”, destaca o religioso. 

Confira abaixo entrevista com o arcebispo dom Murilo Krieger sobre a reflexão desse novo momento da Igreja:

CORREIO -  Como a canonização de Irmã Dulce pode auxiliar na renovação da fé cristã dos brasileiros?

DOM MURILO -  A canonização projeta um forte raio de luz sobre determinada pessoa, ressaltando sua vida, suas palavras, suas iniciativas etc. Portando, a canonização não torna a pessoa melhor, mas mostra o que ela foi. Claro que isso serve de incentivo para inúmeras pessoas, que se sentem estimuladas a fazer o que o santo ou a santa fez. Muitos olham tanto para suas próprias limitações que chegam a pensar: eu não sou ninguém, eu não consigo realizar nada, eu não tenho qualidades etc. Ao olharem, porém, para um santa como Irmã Dulce, descobrem que ela, frágil, com saúde precária, com uma série de limitações, não só atendeu a uma multidão de necessitados como, também, formou um grupo que leva adiante a sua obra. E concluem: se ela conseguiu tudo isso, como posso me esconder atrás de desculpas?...

 CORREIO - A vida de Irmã Dulce foi dedicada à empatia e o exemplo da real solidariedade. Como esse exemplo de Dulce pode ser usado como inspiração? DOM MURILO -  Não se trata de imitar fielmente Irmão Dulce, mesmo porque somos chamados a imitar Jesus Cristo. Mas a força motivadora que a impulsionava a ir ao encontro dos pobres e mais necessitados pode e deve ser nossa também. Como ela, descobriremos, então, que fazer o bem beneficia antes de tudo o próprio autor do bem. Ou, como lemos nos Atos dos Apóstolos (At 20,35) – e é uma observação de Jesus -, “há mais felicidade em dar do que em receber”.

CORREIO -  Estamos vivendo em uma sociedade cada vez mais egocêntrica . Como o exemplo de Dulce pode alterar essa realidade? DOM MURILO -  O ser humano foi criado para o dom de si mesmo aos outros. Nossos olhos são para ver os outros; nossos ouvidos, para escutar o outro; nossas mãos para cumprimentar o outro etc. No entanto, o ser humano tem se fechado em si mesmo, pensando primeiro em si, depois em si e, finalmente, em si. Esse egoísmo o torna infeliz, insatisfeito, inseguro, triste. Quando se olha para Irmã Dulce, o que vemos? Vemos uma pessoa que viveu para Jesus e para os outros; alguém que nada tinha e, por isso mesmo, precisava viver pedindo esmolas, submetendo-se a humilhações, pois o importante era poder atender os que a procuravam. E era feliz. Não reclamava de nada, não criticava ninguém, não percebia os defeitos dos outros. Ela não se deixava prender pelos problemas imediatos: embora tivesse os pés bem fixos na terra, seu olhar estava na eternidade, pois sabia que era para lá que caminhava dia por dia.

CORREIO - A igreja tem mais de 10 mil santos e santas. Muitos deles tornados santos por terem sido mártires. O que fez a igreja mudar o 'padrão' desses santos já que as últimas canonizações são de santos confessores da fé? DOM MURILO -  Os santos são fruto de sua época. Em momentos e em lugares de perseguição da Igreja, multiplicam-se os mártires; em momentos de vida tranquila, sobressaem os confessores. Todos são, antes de tudo, testemunhas de Cristo, cada um à sua maneira. Ninguém consegue imitar Jesus Cristo de forma global, total. Cada santo procurou imitar um determinado aspecto da vida de Cristo. Por isso, alguns se destacam pelo amor aos pobres; outros, pela dedicação aos doentes; há os que ficam famosos pela profundidade de seus conhecimentos teológicos; outros, pela paciência que exerceram. Juntos, todos formam um mosaico em que se destaca o rosto de Cristo.

CORREIO -  Qual mensagem a Igreja quer passar ao tornar santa uma mulher brasileira como santa? DOM MURILO -  Desde o início da Igreja, as mulheres tiveram nela um lugar de destaque. Basta lembrar que, no momento em que Jesus morria na Cruz, havia um homem, João Evangelista, e um grupo de mulheres. Ainda hoje merece destaque a presença das mulheres na Igreja. Em nossas comunidades, são elas que mais se destacam. Como é oportuno, pois, poder apresentar para todos um exemplo como o de Irmão Dulce, que bem poderia ser chamada de “Mãe dos Pobres”!

CORREIO - Santas e santos 'locais' acabam tenho uma proliferação da fé naquela região onde eles viviam. Como o senhor acha que a devoção em Dulce pode ir além das fronteiras da Bahia? DOM MURILO -  Nossa Irmã Dulce não é mais nossa: ela deixou de ser soteropolitana e baiana e se tornou “brasileira” . Ela é conhecida e admirada em qualquer lugar de nosso país. Todos se encantam com sua simplicidade, com seu carinho pelos pobres e com seu jeito de fazer o bem sem complicações. Afinal, ela não esperou ter recursos para ajudar os necessitados: ajudava-os com os meios que tinha, do jeito que podia, superando os obstáculos que apareciam à sua frente. E, acima de tudo, pedia; pedia muito; pedia sempre. Todos sabiam que nada do que recebia ficava com ela; nada era para ela. Como não ajudar uma pessoa assim? Como não imitá-la?...

CORREIO -  Em função da canonização de Dulce a arquidiocese pretende mudar algo na condução religiosa na Bahia? Há algum projeto para por exemplo incentivar mais igrejas com o nome de Dulce? DOM MURILO -  Os padroeiros de nossas igrejas não são fruto da escolha do bispo ou do pároco; o povo é que os escolhe, pois se identifica mais com este ou aquele santo. Agora, certamente vão se multiplicar capelas e igrejas com o seu nome, pois, como costumo dizer, “Irmã Dulce entrou no coração do nosso povo”.

CORREIO -  Haverá algum incentivo da Arquidiocese para levar caravanas ao Vaticano para acompanhar a canonização? DOM MURILO - Nenhuma. Quem quiser ir, que procure uma agência de turismo e se organize. Deixamos esse trabalho e responsabilidade para aqueles que têm mais competência e experiência do que nós. Pelo que tenho percebido, haverá muito brasileiro na Praça S. Pedro no dia da canonização de Irmão Dulce...

CORREIO - Há outras pessoas da Bahia que estão em processo de canonização? Há algum (a) outro servo, venerável ou beato nascido na Bahia? DOM MURILO -  Não sei. Agora é que a CNBB está criando uma Comissão – por sinal, por sugestão minha -, para fazer um elenco daqueles que estão em processo de beatificação ou canonização. Em breve saberemos quantos desses candidatos são de cada Estado. De uma coisa é bom ninguém se esquecer: não é porque Irmã Dulce vai ser canonizada que ficaremos todos, automaticamente, mais santos. O caminho da santidade deve ser percorrido por cada um de nós. Ela nos mostra, isso sim, que vale a pena passar a vida fazendo o bem, porque esse bem nos acompanhará na eternidade.

CORREIO - Ano passado o senhor colocou seu cargo à disposição em função da idade. Espera permanecer à frente da Arquidiocese até a cerimônia de canonização? DOM MURILO -  Sim, espero. Claro que isso vai depender de duas coisas: em primeiro lugar, de o Papa me deixar mais alguns meses por aqui; depois, que a data da canonização seja nos próximos meses. Mas estou nas mãos de Deus. Seja feita a Sua vontade!