As pequenas vilanias do cotidiano

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  • Kátia Borges

Publicado em 27 de abril de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Entrego a vocês a nobre missão de tomar conta do planeta. Fiquem com ela, resolvam todas as pendências seculares, revolvam os arquivos e os acervos, estabeleçam um novo cânone. Se for preciso, lutem para subir a algum pódio imaginário. Reservem um espaço em suas estantes para expor os troféus colecionados, providenciem um armário com muitos cabides para o alinhamento das medalhas.

Admito que mal sei administrar as pequenas vilanias do cotidiano. Posso, no máximo, fazer alguém rir um pouco, publicar poemas confessionais e me arrepender no instante seguinte, pensar estratégias malucas para não enlouquecer e seguir adiante em meu próprio passo. Posso, no máximo, apontar o dedo para a Lua, dizer do Sol alguma tolice, falar de alegrias ou sobre como ando triste, fotografar o meu almoço.

Se viajo, vejam só, também faço um alvoroço. Os belos quadros no Museu de Arte Latino-Americana em Buenos Aires em dezembro do ano passado. Quatro patos nadando, magicamente alinhados, num dos lagos do Jardim Japonês. Um cachorro preto e branco bebendo água em um chafariz. Um pouco de tango em Puerto Madero. As ruas, as feiras, a estátua de Messi. Borges emoldurado no peito.

Também reservo as quintas-feiras para as lembranças, em flashes do passado. Minha mãe me segurando, bem pequena, sobre um muro, quando ainda morávamos numa casa humilde no subúrbio. Minha irmã sentada ao lado, o rosto repousando sobre uma das mãos. E eu apontando algo, esta velha mania que ainda trago. O que será que eu, assim tão criança, via? Talvez fosse meu pai chegando do trabalho.

Sim, meu pai sempre chegando do trabalho. O pigarro alto do cigarro que o antecedia. A segurança de sua simples presença. Dependurada aqui no alto daquilo que me faço, empoleirada na utopia, observo os horizontes que se movimentam. Formas das nuvens pavimentam algum caminho. Os braços de minha mãe já não envolvem a minha cintura. Posso cair da própria altura. É preciso equilíbrio, de fato.

Então resolvam tudo que os incomoda tanto. Vejam como é fácil. Um pé atrás do outro e, em pouco, chegamos do outro lado. Mentira ou meteoro? Pedra, papel, tesouro. Só quem desiste de algo percebe que esteve lutando todo o tempo. Então não é nem isso. Ando preocupada em não esquecer uma data. Dezessete de maio. É o aniversário de uma desconhecida que encontro sempre na sinaleira de meu bairro e que me pediu de presente um bolo. Todo o resto, me desculpem, considero irrelevante.

Não me peçam nada de importante, pois, sou apenas uma poeta de província. Meu maior elogio foi o beijo que uma desconhecida me deu no rosto. “É por sua poesia”, ela disse. E foi assim que eu ganhei aquele dia, acho que foi um sábado. Nos jardins do Palacete das artes. Não me engano com o modo como pareço para os outros. Dia desses tive um sonho – e sonho pouco. Numa cidade do interior, todos que encontrava trocavam comigo um abraço. Vi jovens índios, negros e pardos, meninas vendendo turbantes, coletivos de mulheres. Uma banda tocando reggae.

Havia uma grande praça, circundada pelo verde. Palestras. Livros de Cortázar. Eu caminhava solitariamente entre uma profusão colorida de miçangas, botons, camisetas, sementes, cocares, bandeiras do arco-íris. E havia garotos e garotas sentados na grama como se dali brotassem, lindamente distraídos. Quer saber? Cuidem vocês deste mundo selvagem. Logo chegará o tempo dos morangos silvestres.