Até quando? Prorrogação de lockdown e toque de recolher deixa dúvidas sobre duração das restrições na Bahia

Entenda qual o critério para considerar a situação sob controle; pesquisadores discutem importância e reflexos da medida mais extrema

Publicado em 6 de março de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil/CORREIO

Um mês de toque de recolher em praticamente todo o estado. Uma semana de lockdown parcial em Salvador e Região Metropolitana. Até então, estas devem ser as durações das medidas restritivas na Bahia. Mas quem pode garantir que, passado esse tempo, estaremos livres destas determinações? As sucessivas renovações de decretos sugerem que não há como prever exatamente. Por aqui, o status da doença vai deixando dúvidas sobre quando chegará o fim destas medidas mais extremas que têm sido amplamente defendidas, por autoridades e cientistas, como a saída que restou para barrar a alta taxa de hospitalizações e mortes. Qual é a meta, afinal, para o governo estadual decidir parar o lockdown?

Em resposta ao CORREIO, a gestão disse que o fim das restrições depende da diminuição do contágio e da redução da ocupação dos leitos de UTI no estado. É necessário chegar a uma taxa menor do que 75% de vagas ocupadas para que a situação seja considerada sob controle, o que não é o caso neste momento, já que a Bahia mantém percentual oscilando para mais de 80%. 

Ainda segundo a administração, o estado tem adotado estas medidas com base nas orientações de especialistas do Comitê Científico do Consórcio Nordeste e que os impactos resultantes dessas medidas só poderão ser avaliados de quinze dias a um mês após a implementação. A Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) não prevê, portanto, por quanto tempo será necessário ficar sob restrições.

Na última semana, o estado registrou uma média diária de mais de 100 mortes e há uma previsão de forte tendência de piora, com provável sucessão de recordes de óbitos. Em entrevista à Mônica Bergamo, da rádio Band News, na quarta-feira (3), o governador Rui Costa (PT) disse que no último pico da doença, em julho, havia 30 mil casos ativos da doença no estado e 800 pessoas internadas em UTIs. Hoje, a Bahia tem 8 mil casos ativos a menos, mas mais de mil hospitalizados em vagas intensivas. “Agora está muito mais agressiva e temos pessoas com reinfecção, pessoas que tinham tomado apenas a primeira dose da vacina e foram infectadas pela nova cepa. A situação é muito grave. As UPAS estão lotadas com gente no corredor. Este momento é a ante-sala da recusa do paciente na porta. Vai chegar a hora em que não dá mais para botar para dentro e vai ter que voltar da porta”, declarou.Em entrevista coletiva na quinta-feira, o prefeito de Salvador, Bruno Reis (DEM), anunciou a proximidade do momento mais trágico, afirmando que a capital está no limite do colapso. “A população precisa se conscientizar e adotar as medidas de proteção”, implorou. A cidade já enfrenta dificuldade para fornecer respiradores a pacientes e, após a abertura de leitos na UPA dos Barris e no Hospital de Campanha de Itapuã, não há previsão de abertura de mais vagas. Mais de 100 pessoas estavam na fila por um leito nesta sexta.

Coordenador das UTIs do maior hospital público do interior, o Hospital Clériston Andrade, em Feira de Santana, o médico intensivista Lúcio Couto diz que tem sido angustiante ver a população pressionando os governantes para a abertura de mais leitos. “Quem está na linha de frente sabe que não adianta abrir leito porque não tem profissionais para assumir estes postos. A terapia intensiva é uma especialidade médica, como também da fisioterapia e da enfermagem. As pessoas fazem anos de experiência para ter título de especialista nisso”, explica ele, que também é da diretoria regional da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib). 

Segundo o médico, a mortalidade pode ser muito mais alta em UTIs com profissionais menos experientes. Parte da solução do problema, para ele, é contar com a contribuição das pessoas em relação ao uso de máscaras, higiene das mãos e isolamento social.

Lockdown adianta?

O economista Thomas Conti, professor do Insper, observa que o debate sobre o lockdown tem tratado esse recurso como se a questão fosse um problema de quinze dias ou um mês, quando, na verdade, o que está em jogo é o ano inteiro de 2021. “Só que o que acontece, na verdade, é que a situação em boa parte do país é explosiva, muito grave, e o lockdown é uma medida que pode frear esse avanço. Mas, se não forem tomadas uma série de outras medidas, assim que o lockdown for retirado, os casos vão voltar a subir e o problema se recoloca”, alerta. “E nenhum lockdown funciona sozinho, a população tem que vir junto e estar disposta”, completa. Se outras estratégias não forem associadas, este ano pode ser uma corrida, diz Conti. Será uma competição para ver quem é mais veloz: o vírus ou a nossa capacidade de vacinação. O economista argumenta que é preciso adotar medidas para que, quando for necessário acionar o lockdown, ele não precise ser imposto outras vezes. Como não tem sido feito um efetivo rastreamento de contatos de infectados em lugar nenhum, o professor acredita que não há um plano de longo prazo para o combate à doença e, por isso, fica difícil dar uma previsibilidade aos trabalhadores e empregadores quanto à duração das medidas.  

“Uma coisa é você dizer para ele: ‘Olha, a gente vai ter que fechar tudo por 15 dias, mas a gente tem um plano robusto para, no resto do ano, a gente não precisar fechar mais’. Mas fala-se que vai durar uma semana e não tem a menor ideia se isso vai continuar ou não, aí passa uma semana, renova, passa outra, renova. A previsibilidade é algo que ajudaria o setor, inclusive o informal”, comenta.

Neste momento, o lockdown está sendo aplicado em alguns estados como uma medida de desespero na tentativa de fazer alguma coisa para que os estados e municípios não virem “novas Manaus”, mas sem controle dos casos ativos, a saída não vai ser logo ali, afirma. Para ilustrar o cenário, Conti metaforiza: É como se o Brasil estivesse de pé pisado no acelerador, já que está com contágio sem rastreio, e, quando fica perigoso, debate puxar o freio de mão, que é o lockdown. “Mantém pé no acelerador com freio de mão puxado e depois que solta freio de mão, continua acelerando. É irracional”, analisa.

A salvação

Coordenador científico do portal Geocovid-19 — que analisa e prevê o avanço da doença — Washington Rocha, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), explica que as medidas paliativas que vêm sendo adotadas, como toque de recolher e “lockdown parcial”, podem ajudar a minimizar o quadro, mas ainda assim não resolverão o problema sanitário. Só a vacinação massiva nos salvará, insiste. O próprio governador Rui Costa reconheceu e disse que seria fundamental vacinar massivamente os idosos num intervalo de poucos dias para baixar a crise.

O professor atesta que a adoção do lockdown severo é complexa porque a população já está sofrida, há um ano com perda de empregos, e o setor produtivo também está bastante abalado, mas a questão é que “o que vimos acontecer em Manaus poderá se multiplicar a nível nacional. A probabilidade é grande porque a variante de Manaus está em território nacional e os estudos prévios sobre a cepa estão comprovando que a transmissão dela é até duas vezes maior”, justifica. Três mortes causadas pela variante manauara já foram registradas na Bahia até quinta. A cepa já infectou, comprovadamente, 17 pessoas ao todo.

Whashington avalia que a estratégia de iniciar as medidas restritivas mais pesadas a partir do fim de semana pode ter sido adotada para ter melhor aprovação pela população, mas, na observação dele com base nos índices de isolamento revelados pela startup InLoco, a ideia não foi suficiente para segurar o fluxo da galera. Mais da metade da população baiana quebrou o isolamento no primeiro domingo, 28 de fevereiro.

Considerada uma medida impopular justamente por causa dos reflexos na economia, o anúncio do lockdown já motivou carreatas e protestos de rua de lojistas em Salvador e Feira de Santana pedindo que estado e municípios façam reabertura do comércio. Em algumas cidades, houve até desobediência, que foi reprimida por força policial. 

O economista Marcos Tavares, professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), explica que governos estaduais, no geral, têm orçamento limitado e encontram-se em uma situação muito complicada por não poder contar com recursos e coordenação do governo federal no controle da pandemia, o que vem sendo fortemente denunciado pelos governadores Rui Costa e João Dória (PSDB), de São Paulo. 

O combo do caos

A soma dessas dificuldades é, basicamente: a falta de um auxílio-emergencial que ajude as pessoas a ficarem em casa, o fato de o presidente Jair Bolsonaro desacreditar a ciência, o surgimento de variantes mais perigosas que dificultam o fim dos tormentos e a vacinação muito lenta no país. O pesquisador explica que chegou-se a um momento tão crítico que a importância da adoção do lockdown é igual ao uso da máscara: “indiscutível”, diz. 

Pesquisador da Universidade de Yale, o virologista Anderson Brito pontuou, em seu Twitter, que diante de variantes mais transmissíveis do coronavírus, medidas de prevenção mais duras precisam mesmo ser adotadas, mas é essencial fornecer condições para as pessoas evitarem ter que se expor — como o auxílio-emergencial e crédito para pequenos negócios, que precisam manter empregos.

Em função do combo de problemas e desassistência, governos estaduais, como o de Minas Gerais, têm realizado apertos nas contas para criar os seus próprios programas de transferência de renda, mas não é algo fácil devido ao alto risco de endividamento. “Se conseguem fazer, são dignos de parabéns e estão agindo corretamente”, avalia Tavares. “A renda mínima federal nunca deveria ter parado. Ao encerrar em dezembro, as pessoas entenderam que teriam que sair do isolamento e voltar ao trabalho. Ao dar esse sinal, muita gente foi em busca de emprego. O lockdown, infelizmente, é a saída necessária em um momento em que a vacinação não avança nesse país”, diz o economista da Uesb.

Auxílio para os baianos

O governo baiano confirmou ao CORREIO que tem a intenção de instituir um auxílio, mas disse que a iniciativa está em fase final de análise e o estudo de viabilidade deve ser concluído até o fim deste mês, segundo afirmou a Secretaria da Fazenda da Bahia (Sefaz). O órgão não detalhou o provável valor, duração e nem a previsão de quantas pessoas deverão ser beneficiadas. No mês passado, o governador havia dito em entrevista à Valor Econômico que esse benefício poderia ser dado a cerca de 350 mil famílias de baixa renda com filhos matriculados em escolas da rede estadual.

Desde o começo da pandemia, o governo da Bahia adotou um vale-alimentação de R$ 55, pago em quatro parcelas aos estudantes da rede pública do estado. O benefício foi dado aos mais de 776,4 mil alunos matriculados. O total investido na ação foi de R$ 176 milhões em recursos próprios que não estavam previstos no orçamento. Outro recurso de bolsas de R$ 200 foram dados à 7,6 mil alunos que se dedicaram à monitoria de disciplinas.Por três meses, foi feita a isenção do pagamento de contas de água para inscritos na Tarifa Social da Embasa e com consumo abaixo de 25 metros cúbicos, totalizando mais de 216,7 mil casas, o equivalente a 800 mil pessoas beneficiadas.

Defesa do lockdown

Na segunda-feira, 1º de março, os secretários estaduais de saúde lançaram uma carta à sociedade brasileira relatando o abismo que o país já vive e manifestando-se, abertamente, a favor de medidas restritivas máximas para evitar o colapso nacional. A primeira indicação deles foi por maior rigor na restrição às atividades não-essenciais, conforme a situação da doença em cada região, pedindo por impedimentos implacáveis nos locais onde a ocupação de leitos esteja acima dos 85%. 

O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) sugeriu toque de recolher nacional das 20h até às 6h, incluindo nos fins de semana, além de instituição de barreiras sanitárias nacionais e internacionais, considerando fechar aeroportos e transporte interestadual. 

“Entendemos que o conjunto de medidas propostas somente poderá ser executado pelos governadores e prefeitos se for estabelecido no Brasil um “Pacto pela Vida” que reúna todos os poderes, a sociedade civil, representantes da indústria e do comércio, das grandes instituições religiosas e acadêmicas do país, mediante explícita autorização e determinação legislativa do Congresso Nacional”, escreveram.

Sem defender abertamente o lockdown, também em uma carta aberta, o Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb) pediu que os governantes multipliquem a oferta de vacinas em quantidade suficiente para a maioria da população no mais curto espaço de tempo. Doutora em epidemiologia, Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), arriscou uma conta simples. Existem cerca de 200 milhões de brasileiros e, se tivermos vacinas e for possível imunizar um milhão e meio de pessoas por dia no país, em 100 dias seria possível vencer a pandemia.

Brasil: país pobre?

Entre as autoridades públicas que são mais resistentes à adoção do lockdown é comum a justificativa de que essa medida é mais difícil de ser imposta no Brasil por ser “um país pobre”. O professor Marcos Tavares aponta que, mesmo com índices como o PIB em queda e descendo posições, o Brasil ainda está entre as maiores economias do mundo, ocupando atualmente a 12ª posição no ranking com mais de 190 nações.“A pobreza não pode ser usada para justificar a não adoção do lockdown. Cabe ao governo cuidar do seu povo e assegurar saúde para todos. Adotar ou não o lockdown é uma decisão política diante de uma situação concreta visando preservar vidas”, observa.