Avessas à folclorização, as irmãs da Boa Morte retornam às ruas de Cachoeira

Situação inusitada causou protestos velados e apoios nesse retorno dos festejos e comemoração dos 200 anos da Irmandade

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  • Da Redação

Publicado em 13 de agosto de 2022 às 17:40

- Atualizado há um ano

. Crédito: Antonio Moraes Ribeiro

A partir de hoje até segunda-feira a Irmandade da Boa Morte realizará na cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, as celebrações anuais que rememoram a morte e assunção de Maria, a mãe de Jesus Cristo. Depois de dois anos sem os festejos em decorrência das restrições impostas pela epidemia da Covid-19, esse ano de 2022 a Irmandade retoma suas atividades comemorando os 200 anos de criação, em Salvador, e 202 anos de expansão em Cachoeira, conforme ressaltam as devotas de Nossa Senhora da Boa Morte.

E uma situação inusitada e inesperada causou protestos velados e apoios nesse retorno dos festejos e comemoração dos 200 anos da Irmandade. As irmãs unanimamente recusaram o convite de uma escola de samba carioca de o nome da Instituição figurar como tema carnavalesco. Para alguns, a Irmandade ganharia mais visibilidade, daria mais visibilidade a histórica e turística cidade de Cachoeira, além do polpudo cachê que ganharia.

No entender das irmãs, isso folclorizaria a Irmandade, que é uma instituição bissecular. Além disso, elas argumentam que os diretores da Escola de Samba são umbandistas e elas não aceitariam estar em alas onde figurariam imagens de exus, pombas-gira, marias padilhas e outras entidades umbandistas. “A Irmandade da Boa Morte cultua Maria; não cultua Exu”. 

Ícone da resistência e do orgulho preto, a Irmandade da Boa Morte ainda preserva importantes emblemas que caracterizam a Entidade, que a partir da segunda metade do século XIX se impôs como uma sociedade abolicionista feminina, provavelmente a única existente no Brasil, e com esse espírito de solidariedade e ajuda mútua persiste até dias atuais.  

A Irmandade da Boa Morte foi criada por mulheres africanas economicamente emergentes, dentre elas algumas islamizadas adeptas do culto aos orixás, que além do papel político que exerciam na sociedade escravista, se impuseram também como institucionalizadora do candomblé baiano enquanto um fenômeno urbano.

Como um corpo religioso feminino, a Irmandade publicamente dramatiza os três dias da morte ou dormição de Maria, o traslado do seu corpo para o Monte Sião, em Jerusalem, e a ascensão do seu corpo ao céu, segundo os relatos apócrifos bíblicos. Porém, privativamente a Irmandade da Boa Morte é um contraponto à Sociedade Egungum, que cultuam os ancestrais masculinos.

A Irmandade, privativamente reverenciam as grandes mães de acordo como até dias atuais realizam as Sociedades Gèlèdé no Benin e na Nigéria, que são as ancestrais femininas e os orixás ligados à concepção (Oxalá, Iemanjá, Nanã, Oxum) e à morte (Ogum, Obaluaiyê e Nanã), e a Nanã e Oxumarê, que são orixás que atual nos planos do Orum (o céu) e o Aiyê (a Terra).

As cerimônias iniciam à noite com o traslado de Nossa Senhora da Boa Morte para a capela da Irmandade, missa pelas irmãs falecidas, seguido do banquete, ou ceia branca, que as irmãs compartilham entre si e com as pessoas presentes. Nesse rito de agregação, a comida oferecida consistem em pães, saladas, peixes, arroz, tudo à base de azeite de oliva.

No dia seguinte, domingo, ocorre, à noite, a Procissão do enterro, que percorre algumas ruas de Cachoeira com a imagem de Nossa Senhora deitada em um esquife. As irmãs vestem o traje de gala, mas não usam adereços nem expõe a cor vermelha do chale. As irmãs usam também um lenço que encobre parte da cabeça, que é chamado bioco.

Segunda-feira (15) é o dia de Nossa senhora da Glória. A procissão representa a assunção do corpo de Nossa Senhora ao céu, conforme é relatado nos proscritos bíblicos. Nesse dia, diferente da procissão anterior, as irmãs ostentas colares, balangandãs, pulseiras, brincos e mostram o lado vermelho do xale, além de ostentarem muita alegria. A procissão ocorre pela manhã depois da missa.

Depois da procissão, a Irmandade oferece a tradicional feijoada depois de dançarem valsas e se confraternizarem. À noite a festa continua com samba-de-roda, que vai até início da madrugada. Terça-feira e quarta-feira, à noite, é servido cozido, um repasto feito de verduras e carnes, e o caruru, respectivamente, sempre seguido de samba-de-roda. *Historiador, pesquisador e autor do livro "Bitedô, onde moram os nagôs: redes de sociabilidades africanas na formação do candomblé jêje-nagô no Recôncavo baiano".