Azul de Jezebel: elementos tornam as cores de Salvador misteriosamente únicas

Luz já foi citada por poetas, inspirou música icônica de Armadinho e é paraíso de fotógrafos; resposta é científica

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  • Fernanda Santana

Publicado em 29 de março de 2019 às 05:10

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fernando Neiberg

Algo completamente mágico, mas também completamente científico, ocorre entre o primeiro raio de sol até a chegada aos becos e avenidas que tornam as cores de Salvador especiais. A cidade é banhada por um híbrido complexo, do qual nasce uma luminosidade citada até como única. As horas de sol, as nuvens muito brancas, as águas da Baía e do Atlântico e a posição no mapa tornam suas cores um mistério. O segredo agora é revelado e te desafiará a enxergar Salvador sempre através da luz. 

A luz intensa e o céu de um azul profundo revelaram até paixões. O sol já se punha quando Amanda Oliveira absorveu da imensidão das cores a inspiração para se tornar fotógrafa, em 2005. De frente para a Baía de Todos os Santos, registrou, na contraluz, um rapaz que corria em frente ao sol.“Aqui existe uma luz que faz com que tudo pareça quente. A intensidade solar quando bate aqui nessa cidade, não sei por que, ressalta todas as cores”, comentou Amanda. CLIQUE AQUI E CONFIRA ESPECIAL 'FELIZ-CIDADE' SOBRE OS 470 ANOS DE SALVADOR 

O fotógrafo Pierre Verger, por exemplo, dispensava as luzes artificiais. E a luz natural de Salvador, irradiada nas cores do povo e das ruas, servia-lhe suficientemente. “Eu acho um título pertinente e adequado falar da luz de Salvador como especial e cheia de particularidades. De vez em quando, uma paleta de cores completamente diferente atinge a cidade”, opina o fotógrafo e professor da Unijorge Leonardo Bião. 

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Mas, sem bairrismo, a luz de Salvador é realmente diferente? De geógrafos a físicos e fotógrafos, descobrimos singularidades. Um caminho teórico e perceptivo revela os mistérios luminosos de Salvador. O primeiro surge da posição da cidade no mapa. “Nós estamos cercados de mar, isso certamente ajuda”, continua o professor.

De fato ajuda. A professora da Faculdade de Arquitetura da Ufba Márcia Freire, com toda a pesquisa dedicada à iluminação natural, explica: Salvador, por ficar em uma península, está rodeada de água, e o mar em volta funciona como um espelho.“É muito mar. E o espelho d'água tem um potencial de refletir a luz muito grande. Quando você olha para o mar no meio-dia, parece algo metálico. Aquilo ali é a luz refletindo. O resultado é um brilho muito grande”.Antes de penetrar a cidade, no entanto, os raios de sol ainda costumam passar por filtros naturais que amenizam a luz. O clima tropical-úmido de Salvador e a posição geográfica formam nuvens mais brancas e uniformes, com acumulação de gotas de água menores. Assim, o sol não fica completamente encoberto e encontra vazão para distribuir luz pela cidade.  Dourado sobre o mar e refletido no corpo do menino (Foto: Amanda Oliveira) O resultado é metaforizado pelo escritor João Filho, admirador de luz natural e autor do Dicionário Amoroso de Salvador.“No sertão, tudo é mais incisivo, a luz é gritante. Eu digo que é uma luz feita com bisturi. A luz de Salvador seria feita com seda”, filosofa.  Nas regiões como Salvador, próximas à Linha do Equador, a radiação solar também penetra mais vertical e intensamente. São lugares com estações pouco definidas e maior quantidade de sol diária. No Verão, o sol chega a brilhar por 12 horas, o que põe Salvador na lista das 20 mais ensolaradas do Brasil durante o período, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). A média anual é de sete horas de sol por dia – nacionalmente, a estimativa é de seis horas. “É um período maior com a iluminação, desde a saída da Primavera até o fim do Verão. O período de chuvas está muito concentrado no período fixo de abril a junho”, explica Heráclio Alves de Araújo, meteorologista vinculado ao Inmet. Mesmo os pequenos universos de percepção oferecem muito. É o que acredita a fotógrafa Célia Aguiar, sempre encantada com a luz que vem da janela e modula todo o ambiente. “É a luz mais especial que eu conheço. A luz que entra em casa é sempre diferente, é como se eu vivesse sempre num lugar diferente. Vou nessa viagem, dessa luz especialíssima, com brilho, que torna a convivência mais refrescante”. 

O ciclo da luz começa no sol, passa pelas nuvens até chegar ao mar e acender a cidade. Mas ainda há muito por trás dos segredos da luz feita com seda.  

Os mistérios luminosos O azul do céu e a intensidade da luz na cidade também dependem de outro aspecto das nuvens em Salvador: a altura. Na maior parte do ano, as nuvens estão a mais de 12 km de distância. Por isso, as chuvas, quando ocorrem, são rápidas, logo a claridade volta. As partículas de umidade, na verdade, próprias do clima de Salvador, apenas potencializam uma luz já muito radiante."A nuvem reflete até mais do que o céu. Até pela cor da nuvem. A capacidade do branco é maior que a do azul", diferencia Márcia. A aparente limpeza do ar também tem uma parte que lhe cabe neste latifúndio luminoso. O geógrafo Arno Brichta afirma que, em termos de percepção, a limpeza é fundamental. "Perceba cidades como São Paulo. Vive-se sob um acinzentamento, o que não é normal aqui", compara o professor da Ufba.

As 10 estações instaladas pela Vigilância em Saúde Ambiental de Salvador mostram que a qualidade do ar da capital é considerada boa em 90% da cidade - o resto oscila entre regular e bom. "Salvador é uma península, mar em todos os lados, a tendência é que a brisa retire de Salvador, espalhe" explica o coordenador Lourenço Ricardo.

Claro, a luz revela-se de maneira diferente conforme as horas do dia. As eleitas mais especiais pelos fotógrafos são os clássicos nascer e pôr do sol, pela intensidade reduzida do sol. No início de 2017, imerso na fotografia de pescadores, o baiano Fernando Naiberg registrou Salvador em suas primeiras horas.“Era um azulão frio, um amarelo frio. Antes de entrar o amarelo, algo de violeta surgindo. Por temperatura em Celsius não sei explicar, mas era muito especial”, lembra o hoje morador de Lisboa, dona de uma luz elogiadíssima, objeto de poemas e telas. O outro lado da luz, considerada igualmente fundamental, são as próprias cores da cidade. Afinal, a luz chega aos olhos porque uma matéria a refletiu. "A luminosidade está na própria cidade, na percepção das cores que vemos... Você envolve os seres humanos nesse processo", justifica Arno Brichta. São os chamados rebatedores naturais. O azul e as misturas do céu de Salvador (Foto: Fernando Neiberg) O fotógrafo Fernando Naiberg também reforça a tese: dentro de um centro urbano, com rebatedores por todos os lados, tudo é um impacto. E Salvador, cheia de cores nos prédios, casas, pessoas e feiras é um impacto ainda maior. "Tudo depende desse prisma pelo qual você enxerga as coisas", acrescenta.

Mas luz está em excesso para os fotógrafos? "Para mim, é solução", responde Amanda Oliveira. É também motivo de felicidade, Amanda complementa: "A luz de Salvador me encanta lindamente. Quando você começa a apreciar essa grandeza, as coisas ficam felizes."

Azul de jezebel A luz é e foi objeto de outras contemplações artísticas. O poeta Castro Alves escreveu: "Se acaba o sol, porque nascia? Se é tão formosa a luz, porque não dura?". No livro de João Filho, Dicionário Amoroso de Salvador, a luz da capital baiana recebe um capítulo só para si. "Alague a chuva, torre o sol, a luz daqui é morena. E é possível? Absolutamente. É a clareza mediterrânea nos trópicos. Deter-me-ei na luz morena. Nessa luz morena há cintilações helenísticas."

Da poesia, as cores também chegam à música. Você sabia que Zanzibar, composição de Armadinho e Fausto Nilo para A Cor do Som, também teve como inspiração, entre tantas outras e muitos surrealismos, no azul de Salvador?"As cores são as cores da Bahia. É Calcutá porque é uma cidade tropical com cores de Salvador, de Fortaleza [cidade de Fausto]", contou Armandinho.Uma parte, inclusive, foi composta no terraço da casa de seu pai, Osmar Macedo, no Bonfim. "Azul de Jezebel... é difícil explicar, mas sempre teve essa ligação com o tropical", acrescenta. É muito mais que o azul de Zanzibar!

 

Na pintura, a luz é aproveitada de maneira igualmente simbólica. É a luz no seu conteúdo mais fundamental. Foi como trabalhou o pintor Carybé. “Carybé traz trabalhos coloridos, uma alusão à luminosidade. É um trabalho clássico de oposição de luz e sombra”, afirma a artista plástica e o professora de Belas Ares Alejandra Muñoz. 

A arquitetura também revela seu momento de maior uso da luz. Acontece no Modernismo, cujo expoente baiano foi o arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé. “Soube trabalhar muito bem edifícios localizados em cidades tropicais como Salvador. Tomando os cuidados para dosá-la, evitando o ganho de calor. Trabalhou assim nos hospitais da Rede Sarah, mas também em outras tipologias, como igrejas...”, cita Márcia. Todos eles patrimônios materiais da luz. 

Há até uma brincadeira em que o baiano é descrito como fotossensível. Sai a luz, junto com o mau tempo, e entra o mau humor. "Uma das coisas que mais me chamaram atenção desde que cheguei no Brasil [há 27 anos]", brinca Alejandra. Não há nada que prove a fotossensibilidade do baiano. Tampouco se a luz de Salvador é mesmo única. Mas, para bom observador, não é necessário muito mais que um nascer do sol. 

*Com supervisão da editora Mariana Rios