Assine

Bahia é campeã no Brasil na infecção por HTLV, vírus da família do HIV


 

Na Bahia, em média 60 mil famílias convivem com o vírus; saiba mais

  • Fernanda Santana

Publicado em 18/11/2018 às 04:24:00
Atualizado em 19/04/2023 às 04:02:04
. Crédito: Foto: Evandro Veiga/CORREIO

A casa no Nordeste de Amaralina, em Salvador, precisou ser adaptada para atender Adjeane. As escadas foram cercadas por corrimão, um amparo à psicóloga, com dificuldades de locomoção. As primeiras precauções surgiram em 2010, quando um hóspede desacordado por 26 anos resolveu despertar.

Era a primeira vez que o HTLV, retrovírus similar ao HIV que pode causar problemas como doenças neurológicas, revelava seus sintomas em um dos seis integrantes da família, todos portadores. Na Bahia, em média 60 mil famílias convivem com o vírus. O estado, com 1,8 mil diagnósticos entre 2012 e 2017 – o equivalente a cinco casos por semana – apresenta a maior incidência do país. 

A segunda filha de Admilton e Maria Sônia descobriu ser portadora do vírus, ainda pouco conhecido pela população, aos 12 anos. O ciclo teve início com o pai, cujo diagnóstico foi confirmado dias depois da desconfiança médica durante uma tentativa de doação de sangue. Não demorou para os três irmãos de Adjeane e a mãe também serem diagnosticados. O vírus, afinal, é transmissível por via sexual e também pela chamada via vertical, da mãe para o bebê durante a amamentação. Na época, muito nova e sem informações, pouco entendiam do que significa ter HTLV. “Lembro dos médicos dizerem: Ah, isso aí nem vai desenvolver, vocês não vão ter nada”.Viveu sem nenhum sintoma até os 24 anos. Enfim, o vírus acordou em Adjeane. Os sintomas apareceram na forma de incontinência urinária e dificuldades de locomoção, comuns em alguns casos de ativação do vírus. No cálculo de pesquisadores, geralmente o vírus manifesta-se de forma assintomática. Ou seja, não chega a desencadear nenhuma doença.“Somente 5% a 10% vão apresentar doenças graves, como doenças neurológicas que impedem a pessoas de urinas e andar, a mielopatia associada ao HTLV, e a Leucemia de Células T [responsáveis pela defesa do organismo contra agentes desconhecidos]”, explica o infectologista Carlos Brites. Em 2013, Adjeane já não conseguia seguir a rotina: foi aposentada por invalidez quando trabalhava uma auditoria de qualidade em um call-center, em Salvador. Ainda hoje, lembra do dia em que percebeu a gravidade do HTLV: “Fui atravessar a pista para chegar no Vale das Pedrinhas. No meio da segunda pista, era 22h da noite, eu cai e não conseguia levantar. Simplesmente não consegui. A ficha caiu ali... fiquei pensando nisso em casa. De lá para cá, começamos a viver a realidade”. A história de Adjeane é o retrato de boa parte dos casos notificados, mais comuns entre mulheres.

As mulheres correspondem a 74,2% das infecções por HTLV de 2012 a 2017, segundo cálculo da Secretaria de Saúde da Bahia. Em 2015, a porcentagem atingiu os 77%. As razões para maior incidência na parcela feminina são explicadas pelas próprias características do vírus, acreditam especialistas ouvidos pela reportagem, e pelos meios de transmissão.“A primeira coisa é que parece que há maior preferência maior pelo sexo feminino, porque a transmissão sexual é mais eficiente nesses casos. A amamentação é outro motivo”, justifica, novamente, o infectologista Carlos Brites”. O aleitamento materno, mostra a Sesab, tem sido a principal via de infecção na Bahia. O índice de infecção de mães infectadas para os bebês ocorre em até 30% dos casos, estima a Sesab. Por isso, Adjeane evitou até mesmo engravidar, uma vez que as doenças provocadas pelo HTVL podem ser tratáveis, mas o vírus nunca é eliminado do organismo. “Minha mãe mesmo amamentou todo mundo. Imagine, se fosse lá atrás, ela não faria isso, porque sabia... seria diferente”, supõe Adjeane.

O risco de infecção é ainda maior em casos de longa exposição. A infectologista e pesquisadora ligada à Fiocruz Fernanda Grassi explica. “Diferentemente do HVI, o HTLV está incorporado às células, não é um vírus livre [presente nos fluidos corpóreos]. Quanto maior o tempo de amamentação, maior o perigo”.

As mães podem solicitar, em unidades de saúde, o fornecimento de leite com fórmula especial até o primeiro ano do bebê. Já o motivo pelo aparecimento de doenças é completamente desconhecido, embora, com frequência, seja associado a questões genéticas. As descobertas ainda empacam no financiamento a pesquisas sobre o vírus. Mesmo descoberto em 1980, antes da descoberta do HIV, em 1983, trata-se mais as consequências que se buscam os porquês, acredita Carlos Brites:“Entendeu-se como o vírus age, mas, se você compara com o HIV, você vê a diferença. NO HTLV. É como se houvesse um entendimento de que não é grave, porque o grau de letalidade é baixo, mas o custo social é caro, muito caro. Porque você vai ter indivíduos, por exemplo, impossibilitados de funções básicas”.   Por que Bahia?

Acredita-se que o HTLV tenha desembarcado no Brasil direto de navios negreiros saídos da África Ocidental, de onde foram retirados à força a maioria dos escravizados. Hoje, as pesquisas são categorias ao afirmar: onde houve grande incidência de tráfico de escravos, é superior a presença do vírus.

É um dos porquês de a Bahia ser considerado o local com maior número absoluto de portadores de HTLV, seguido do Maranhão. Nos centros urbanos brasileiros, a infecção é estimada em menos de 1%, taxa que cresce para 1,8% na Bahia. Até hoje, são mais infectados negros em condição de vulnerabilidade social, de acordo com a Sesab. 

A outra face de uma infecção ainda marcada por estigmas. Na região onde mora Adjeane, por exemplo, o rendimento mensal é de R$ 649, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, R$ 304 a menos que o valor do salário mínimo. Quando elabora políticas de ação, é justamente para as regiões mais populosas e pobres que o olhar da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) é direcionado. Atenção especial para os distritos de São Caetano, Subúrbio e Liberdade, onde, embora de maneira tímida, os 49 casos registrados em Salvador, de 2015 a 2018, aparecem mais frequentemente. 

Os centros especializados e gratuitos de tratamento, inclusive, estão localizados em regiões próximas: o Semae, na Liberdade, e o Sae, no Bonfim. Também é possível encontrar tratamento no Centro de Tratamento ao Portador de HTLV, na Escola Bahiana de Medicina, e no Hospital das Clínicas. 

A Coordenadora do setor de Infecções sexualmente transmissíveis da SMS,  Helena Lima, explica a linha de atuação, atenta à presença do vírus na cidade:“O HTLV acontece em bolsões, então, realmente se fosse a nível do que precisássemos, é de uma política ministerial. Porque em toda família com um infectado existe uma cadeia de transmissão”.Quando retornou de São Paulo para Salvador, Carlos Brites, em 1988, as primeiras pesquisas sobre HTLV começavam a ser iniciadas, em parceria da Universidade Federal da Bahia com a Universidade Cornell, de Nova York. Participou das empreitadas até que, cinco anos depois, houve uma transição considerada fundamental, na Bahia, para o catálogo de casos. Na falta de uma política ministerial específica e diante dos primeiros diagnósticos, uma lei estadual obrigou a testagem de HTLV no pré-natal. A ideia era romper pelo menos alguns os bolsões dos quais falou a coordenadora Helena. Também começou a expor casos existentes, mas até então ignorados. 

A detecção do vírus é sempre realizado por meio de um exame de sangue, o chamado exame sorológico. Se começou a expor as infecções entre as grávidas, continuou mascarada a situação entre os homens. A SMS começou, então, a convocar os homens, em um sábado do mês divulgado previamente pela pasta, para testagens. “A busca tinha sido prioritariamente em mulheres grávidas, então esse número pode ser maior”, diz Helena. 

Mas, a descoberta de novos casos é realmente impulsionada em 2011, quando a Bahia inclui na sua lista de doenças e agravos de notificação compulsória, aqueles de comunicação obrigatória à autoridade de saúde, o HTLV. Os estados e municípios tê autonomia de ascrescentar tópicos à lista definida pelo Ministério da Saúde. E a Bahia o fez, fala a coordenadora Helena, após "luta dos próprios ativistas, como o HTLV Vida [associação de portadores do vírus, em Salvador], que começaram a expor as consequências da infecção".

Abandono do tratamento  Todos os dias, às 22h, o celular de Francisco Daltro, 63, presidente do HTLV Vida, localizado no Dique do Tororó, toca. Do outro lado, Cátia* desabafa sobre o dia a dia. Ou reafirma a indignação quanto ao diagnóstico de HTLV ou pede carona para Francisco a alguma consulta ou encontro da associação de portadores do vírus. Sempre parece distante, em qualquer uma das situações. Enquanto ouve as queixas, Francisco está quase certo do que está por vir: o abandono do tratamento, um dos problemas envolvidos pós-diagnóstico. 

Descobrir a presença do vírus no corpo para, logo em seguida, abandonar o acompanhamento médico é um hábito frequente. O tratamento é iniciado apenas na fase sintomática e depende da doença manifestada. Entre 2004 a 2012, na tese de mestrado em Ciências da Saúde pela Ufba, Leilane da Silva Dias mostrou que, de 479 pacientes do Ambulatório Magalhães Neto, do Hospital das Clínicas, 36% abandonaram o tratamento. As razões principais: desinteresse pela patologia (27%) e a ausência de sintomas (18%). 

A psicóloga Mariluce Cunha levanta outra suspeita: a não aceitação do diagnostico ou desconhecimento completo da doença. Há quatro anos, atende portadores de HTLV por duas sextas-feiras do mês. Percebe um comportamento rotineiro, para o qual adota uma estratégia. “A perspectiva é de fazer ele entender que, ao cuidar dos sintomas, e se aceitar, ele terá uma melhor qualidade de vida. E também de fazer com que ele saiba até o que é a doença”, conta.

Muitos não aceitam, por exemplo, o uso de bengalas e fraldas, comum no caso de aparecimento de doenças. Por isso, quando o celular de Francisco toca e o número de Cátia aparece no visor ele segue estratégias parecidas.“A gente tenta mostrar que é importante tratar, dar força para essa pessoa continuar”, conta.Desde criança, Francisco ouve e também vive momentos de fraqueza. Em São Gonçalo dos Campos, no centro-norte do estado, via os primos jogarem futebol sem conseguir participar. “Desde lá eu já sentia uma fraqueza muscular, eu mesmo comecei a me excluir”, lembra. Só foi diagnosticado, no entanto, em 2001, quando a esposa descobriu a infecção por HTVL e as dificuldades de locomoção agravaram.  “Tudo indica que eu peguei de minha mãe. Lembro que ela tinha uma dificuldade para andar”, recorda Francisco. 

As lamentações de Cátia e o próprio caminho de Francisco, que esperou por anos um diagnóstico preciso, reforçam a estigmatização em relação ao vírus. “É muito presente e mulheres e negros com menor nível de escolaridade e renda. Então, é uma doença negligenciada por existir esses números”, acredita infectologista Fernanda Grassi.

Em maio deste ano, os médicos pesquisadores Fabíola Martin e Robert Galo lançaram uma carta aberta em pedido à Organização Mundial da Saúde. Pediam a inclusão da doença na lista de doenças negligenciadas pela organização

Os diagnosticados e médicos acreditam que a inclusão pode dar maior visibilidade a um vírus perigoso, mas negligenciado. “Durante muito tempo, acreditou-se que o vírus não causava doença nenhuma. Depois, começou a ser descobrir o que ela causava”, comenta Fernanda. Agora, a luta é mostrar que o vírus não apenas existe, como causa danos muitas vezes irreparáveis. É pela luta que Francisco Daltro atende às quase religiosas ligações de Cátia e responde: “Vai dar certo”.   

Saiba mais sobre o HTLV***O que é? É uma doença causada pelo vírus T-linfotrópico humano (HTLV) que atinge as células de defesa do organismo, os linfócitos T. O HTLV foi o primeiro retrovírus humano isolado (no início da década de 1980) e é classificado em dois grupos: HTLV-I e HTLV-II.  Formas de contágio? A transmissão do HTLV ocorre da mãe infectada para o recém-nascido (Transmissão Vertical), principalmente pelo aleitamento materno. Outras formas de infecção são a via sexual desprotegida (sem camisinha)  com uma pessoa infectada e o compartilhamento de seringas e agulhas.

Sinais e sintomas? A maioria das pessoas infectadas pelo HTLV não apresentam sinais e sintomas durante toda a vida. Dos infectados pelo HTLV, 10% apresentarão algumas doenças associadas a esse vírus, entre as quais podem-se citar: doenças neurológicas, oftalmológicas, dermatológicas, urológicas e hematológicas (ex.: leucemia/linfoma associada ao HTLV).  Tratamento? O tratamento é direcionado de acordo com a doença relacionada ao HTLV. A pessoa deverá ser acompanhada nos serviços de saúde do SUS e, quando necessário, receber seguimento em serviços especializados para diagnóstico e tratamento precoce de doenças associadas ao HTLV.  Prevenção? É recomendado o uso de preservativo masculino ou feminino (disponíveis gratuitamente na rede pública de saúde) em todas as relações sexuais, e o não compartilhamento de seringas, agulhas ou outro objeto cortante. Da mesma forma, a amamentação está contraindicada (recomenda-se o uso de inibidores de lactação e de fórmulas lácteas infantis). 

*nome fictício a pedido da fonte **Com supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier ***Fonte: Ministério da Saúde