Baiano xinga como a porra, mas por quê?

‘Boca suja’ de boxéu desconcertou Galvão Bueno, mas agradou a maioria por aqui. Pode isso?

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  • Da Redação

Publicado em 8 de agosto de 2021 às 07:02

- Atualizado há um ano

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Palavrões deram sorte: Hebert Conceição levou o ouro em Tóquio por Foto: Wander Roberto/COB

Hebert Conceição comemora classificação à semifinal do boxe: "Eu mereço pra caralho! Nós trabalhamos pra caralho, porra!" (Foto: Reprodução/TV Globo) Um xingamento quase sempre estoura em reação a uma situação desagradável, mas tal lógica foi pra lona essa semana, assim que o baiano de ouro Hebert Conceição, esquecendo ser um “nobre guerreiro” e que estava “de alma leve”, após garantir medalha em Tóquio, começou a largar uns palavrões ao vivo, na TV.

Na Globo, Galvão Bueno deu pra ruim, ainda que dissesse que o moço tava no direito. Mas enquanto meio Brasil se ruborizava com uns porras e caralhos em justo desabafo, na Bahia, em geral, a parte da galera que não se emocionava, se acabava na risada – e também houve quem passou pelos dois corners.

“Eu sou medalhista olímpico, caralho! Eu mereço pra caralho! Nós trabalhamos pra caralho, porra! Aqui é Brasil, porra! (...) É Brasil, é Bahia, é Salvador, porra!”, disse no discurso da vitória – ou do triunfo, já que como reporta meu colega Vinicius Nascimento, o broder é Bahia doente.

Ensaiando uma discussão saudável sobre o desabafo, e já premeditando trazê-la a esta coluna, perguntei num grupo de zap cheio de tricolores ‘por que na Bahia se xinga tanto, mas quase ninguém liga?’ Ninguém ligou muito pra pergunta, exceto um nobre guerreiro de alma sebosa que enxotou este rubro-negro com um “Bora Bahia Minha Porra”.

Xingamento culposo A ofensiva ao “porra” da Bahia parecia que pararia em Galvão, mas foi denunciada em mais uma ocasião pelo escritor Xico Sá, que chiou quando a mãe de Ana Marcela, comemorando o ouro na maratona aquática, foi censurada.

“Rapaz, a tv bota um ‘piii’ para um belo ‘porra’ materno e baiano? Não precisa desse cuidado moral todo… Isso nem é palavrão. E dito por uma mãe, em pleno momento de explosão do ouro olímpico! Foi um porra com som de reza forte”, professou.

A crítica ao carai também acabou bem rebatida. Ao garantir o topo do pódio, novamente ao vivo, Hebert adequou o palavreado: "rocombole pra não falar caralho". 

Mas o xingamento culposo (quando não há intenção de ofender) parece difícil mesmo de explicar para quem não é dessas bandas. Autor do famoso ‘Dicionário de Baianês’, o escritor Nivaldo Lariú é fluminense de Itaperuna, e por vir de uma escola com estilo de jogo parecido, soube se adaptar e entender a proposta mais rapidamente.“Na realidade, o palavrão não tem na Bahia o mesmo peso que tem no resto do país. Aqui se convive tranquilamente com esse estilo, que já virou um veio da linguagem popular. E que permeia todas as classes sociais, sem ferir os ouvidos. Deve ser por isso que nossa linguagem popular por excelência, o baianês, use e abuse da putaria, dos xingamentos em geral”, destaca Lariú, que também salienta a quantidade de significados e funções semânticas da palavra “porra”.Um colega da turma do ‘BBMP’, que prefere não se identificar, também citou essa transversalidade social do palavrão – e isso desde os primórdios!

“O primeiro poeta do Brasil é Gregório de Matos, Boca do Inferno, que é de Salvador e descreve a cidade como um lugar onde furtar e foder é a tônica. Ou seja, um dos nossos primeiros escritores é conhecido pelos textos satíricos, cheios de palavrão, e é um fidalgo, aristocrata, católico”, menciona o amigo historiador, falando em off por motivo de ser bunda mole.

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Sob controle Em on, o sociólogo e professor da UFBA Leonardo Nascimento faz uma abordagem social mais ampla da coisa, a partir da visão sobre o processo civilizatório do sociólogo alemão Norbert Elias.“As sociedades têm diferentes graus de permissividade em relação a um conjunto de aspectos, e a linguagem é um deles. Além do controle sobre o corpo, há também o que Norbert Elias chama de uma certa conspiração do silêncio em torno de algumas palavras”, destaca Nascimento, citando a progressiva tendência de se banir do meio social determinados termos.“O que eu acho curioso em relação à Bahia é que é um dos poucos lugares, dos muitos que já estive, que temos uma permissividade muito grande em relação a isso. Tanto que há uma brincadeira entre homens de pegar na bunda do outro, um tipo de permissividade do acesso ao corpo do outro que seria intolerável, por exemplo, em meios europeus”.

Ainda de acordo com Nascimento, na medida em que as sociedades se desenvolvem, vão se complexificando, há um progressivo aumento do controle externo e do autocontrole sobre essas expressões corporais e de fala.

“No momento que o pugilista chega e xinga, o Brasil é bastante complexo, ele vai encontrar diferentes graus de pudor em relação àquele tipo de expressão. Talvez esse seja o incômodo do Galvão. E também porque essas coisas são banidas da TV”, conclui.

Língua e sociedade No cinema, a história muda um pouco de figura, e essa liberalidade chamou a atenção da pesquisadora Josane Moreira de Oliveira, coordenadora da pós-graduação em Linguística da UEFS e professora da pós em Letras na UFBA. 

Com importantes trabalhos relacionando língua e sociedade, ela publicou em 2018 um artigo no qual faz uma análise sociolinguística dos ‘palavrões’ falados nos filmes ‘Cidade Baixa’ (2005) e ‘Ó Paí, Ó’ (2007), ambientados em Salvador, e curiosamente as ocorrências mais comuns batem com a fala do pugilista.

“‘Porra’ está em primeiro lugar disparado [no ranking], com cerca de 60%, e em segundo lugar, mas muito distante, vem o ‘caralho’. (...) Sou uma pessoa que viajo muito, tenho amigos no Brasil inteiro, e muitos falam que aqui na Bahia ouvem muito o ‘porra’, que aqui tudo é ‘porra’”, assinala a professora Josane, que escolheu as películas como objeto de pesquisa por fornecerem cenas do cotidiano que propiciam contextos de ocorrência da ‘boca suja’.

O contexto, aliás, seria a principal explicação para o estranhamento de Galvão sobre a manifestação do boxéu soteropolitano."As coisas na língua têm valores sociais, e o que incomoda não é só o palavrão. Você dizer ‘agora nós vai beber o quê?’, em casa, é normal. Mas se você, como jornalista, escrever isso no jornal, isso vai chamar a atenção. E isso depende também do receptor", sustenta a pesquisadora."Eu acho que para um baiano, de nível popular, o discurso dele foi maravilhoso, mas tenho certeza de que a elite deve estar metendo o pau", prossegue Josane Oliveira, que também usa essa última palavra para levar a discussão à construção de sentido do baixo calão.

“A palavra pau, por exemplo, não tem nada de ruim. Mas em certos usos ganha um outro sentido e se torna agressiva, né? Isso mostra que na língua existem vários usos e que tudo depende da situação, da pragmática, da relação entre os interlocutores”, complementa.

Vale destacar ainda, comenta a pesquisadora, que muitas vezes outra palavra ou expressão não revela o sentimento momentâneo. "Dizer que está muito feliz não é a mesma coisa que dizer que 'está feliz pra porra' ou 'feliz pra caralho!' A intensidade é outra. É maior quando sai dos porões da nossa mente, e isso só acontece com os palavrões", finaliza.

Proibido proibir Palavrão nunca foi tabu lá em casa, mas quando criança meus pais costumavam repreender, especialmente na frente das visitas. Criado sob censura branda, lembro que me chamou a atenção um ambiente em que a meninada podia largar o doce sem medo de ser feliz: a casa do meu amigo James Martins, poeta, jornalista e adepto do BBMP.

Pra fechar este texto, pedi que ele fizesse um breve relato sobre essa aposta na liberdade total, afinal, depois que cresceram, nunca vi Dora Gabriela, Wendy e João sendo desbocados.

“Tenho três filhos, duas meninas e um menino, e nunca os privei de usar palavrões. Ao contrário, os compartilhamos com o prazer da palavra bem empregada, em geral para dar ênfase. Não vejo razão para uma criança não poder achar algo bom pacaralho ou feio como a porra”, apresenta-se. O poeta James Martins nunca foi de repreender os filhos Dora, João e Wendy sobre uso de palavrões (Foto: Acervo pessoal) “O que acho importante é ensinar que não se deve sair por aí ofendendo os outros. Uma vez minha filha do meio mandou a avó ‘tomar no c*’. Foi a hora da conversa séria, de mostrar as sutilezas entre a linguagem enfática e o desrespeito. Ela entendeu", ainda bem.

"Curiosamente, essa minha filha quase não usa palavrões em sua linguagem cotidiana. Talvez seja mais uma lição de que ‘o que muito se evita se convive’, e de que a educação pela proibição, pela privação ou pela omissão quase nunca funciona. Sobretudo porque palavrões, aqui na Bahia, são muitas vezes formas carinhosas de tratamento. Né não, viado?” Num é o quê...