'Banho de caneco': veja sacrifícios de alguns dos 9 mil romeiros na festa de Irmã Dulce

Em Salvador, dupla caminhou 8 quilômetros de Amaralina até a Fonte Nova

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 21 de outubro de 2019 às 05:18

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Tiago Caldas/CORREIO
De turbante, estrangeiros levaram até cosplay de Irmã Dulce por Foto: Tiago Caldas/CORREIO

A fé não mede distância, não liga para tempo de espera e ignora graus celsius. Os 482 Km de estrada, as mais de 10 horas de viagem, altas temperaturas e a falta de recurso para estadia não foram impeditivos para o grupo de 47 romeiros que saiu de Teotônio Vilela, em Alagoas, para a celebração de canonização da Santa Dulce dos Pobres, em Salvador, na Arena Fonte Nova. Desde a partida, no sábado pela manhã, eles já estavam cientes de que teriam que dormir no ônibus na virada para a festa neste domingo (20). Ninguém reclamou.

Falava mais alto a vontade católica de estar perto da cerimônia da primeira santa brasileira. Quando desembarcaram na capital baiana, já estava escuro. Era mais de 22h e a dormida seria no estacionamento de um posto de gasolina. Mas à meia-noite, tudo se iluminou. Uma liderança religiosa teve conhecimento da agrura dos alagoanos e foi até o local 'resgatá-los' para que se hospedassem no Convento de São Francisco, no Pelourinho.

“Olha, pode-se dizer que alcançamos uma graça de Irmã Dulce. Viemos de Alagoas, sem nada pronto, sem ter lugar para ficar. Por nós e pela fé, ia ser na rua mesmo. A gente já estava tomando banho de canequinho no posto, uma protegendo a outra de noite. Mas, de repente, fomos acolhidos. Então é um milagre que recebemos”, narra, sorridente, a peregrina Maria do Socorro, 61. A graça alcançada incluiu ainda banho de chuveiro, café da manhã e almoço, brincou um.

De acordo com as Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), dos 55 mil ingressos distribuídos de graça para as paróquias, 9 mil deles (16,4%) foram destinados ao público de cidades do interior da Bahia e outros estados. Era possível notar a presença deles em toda a extensão do Dique do Tororó, que estava tomada por ônibus parados, com espaços pré-determinados pela Transalvador.

Chegaram à Salvador pessoas de todas as capitais do Nordeste e até de São Paulo e Tocantins. Estado da primeira miraculada por Santa Dulce, Sergipe compareceu em peso, com caravanas de 15 cidades. 

Entre estas estava uma de 60 fiéis, vindos de Teolândia (BA), distante mais de 200 Km da capital. Dois veículos fizeram o transporte da turma. Enquanto o ônibus ficou reservado para a galera mais idosa, a turma do barulho, mais jovem, foi acomodada numa van Sprinter. Segundo a estudante Jamile Lima, 17, o trajeto foi uma bagunça equilibrada. 

O tempo de viagem dos adolescentes inquietos foi encurtado com músicas do cantor cristão Tony Allysson, hits sertanejos e clássicos infantis de Mundo Bita e da antiga banda Molecada. “A meta era dormir para chegarmos descansados, mas não conseguimos”, contou a jovem teolandense, que usou os lucros das empadas vendidas no colégio para poder participar do momento. 

“Eu aprendi sobre Irmã Dulce na catequese, passaram um filme e sempre falamos da história dela, que é um exemplo para a gente que quer seguir os mandamentos de Deus”, disse Jamile, mais séria. 

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De Amaralina à Arena

Houve romeiros que fizeram deslocamentos menores, mas com grande sacrifício. Por uma confusão do celular, que automatizou a troca para o horário de verão, o artista plástico Adilson Guedes, o Ady Guerra, queria acordar às 6h, mas foi despertado às 5h. Nem sol havia quando ele e o amigo, o cantor Djalma Santos, saíram de casa e foram caminhando do bairro de Amaralina até o estádio - um percurso de 8 Km e que chegou à temperatura média de 30º C às 10h.

Os dois percorreram a rota levando, cada um, uma peça de arte. Nas mãos de Ady, um estandarte da santa produzido que demorou dois meses para ficar pronto. Nas de Djalma, uma cruz com 1.022 fitinhas do Senhor do Bonfim. No caminho, vieram proferindo os seus pedidos à santa que, claro, até que sejam realizados, é segredo entre eles e Dulce.

'Caravana solo'

Para não perder nenhum detalhe, seu Joaquim Albuquerque, 66 anos, chegou aos portões do estádio às 7h da manhã, garantindo o primeiro lugar da fila. Foram mais de mil quilômetros percorridos entre Macau, no Rio Grande do Norte, e Salvador, uma viagem que ele fez sozinho.

Segurando debaixo do braço uma sacolinha com o rosto da freira canonizada, seu Joaquim lembra de quando ouviu falar dela pela primeira vez. “Morei na Bahia por quase 30 anos. Nesse tempo sempre ouvi falar dela. Desde a época que Irmã Dulce saia pedindo doações com aquela sacolinha dela”, lembra ele, sem notar a semelhança de estar segurando, ele mesmo, a própria sacola. 

Apesar de conhecer a figura da Santa há anos, a devoção se intensificou recentemente. Seu Joaquim acredita que foi agraciado com um milagre. “Há uns 30 dias, passei mal e tive que ir numa emergência. Lá, o médico constatou uma infecção intestinal grave e disse que provavelmente seria necessário cirurgia”, conta o aposentado.  Joaquim ficou cinco horas na fila para entrar na Arena Fonte Nova (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) Naquela noite, ele diz que rezou para Dulce, que apesar de ainda não haver sido canonizada já tinha sido proclamada Santa pela igreja. Joaquim pediu que Dulce intercedesse para que a cirurgia não fosse necessária. No dia seguinte, os médicos refizeram o exame para confirmar a necessidade do procedimento cirúrgico. A infecção, no entanto, tinha desaparecido. 

Hoje, bem de saúde, o aposentado veio agradecer. E não se assusta com as horas que ainda tem que enfrentar até a missa, prevista para começar às 17h. “Hoje é um dia de agradecer por tudo que ele fez e faz, não só por mim. Vai ser difícil, mas eu vou aguentar. Por ela valia muito mais. Ficar aqui três dias se preciso fosse” conta ele.  

Para o futuro, ele não pensa em esquecer da Santa. Artista plástico aposentado, o devoto trabalha com restaurações de imagens sacras mas nunca esculpiu uma imagem de Dulce. “Gostaria de fazer alguma imagem dela. Pra que fique registrado um trabalho meu pra ela”, conta.

Como explicar a fé dos romeiros?

Padre Lázaro Muniz, da Paróquia Santa Cruz, no Engenho Velho da Federação, explica que a romaria é o deslocamento das pessoas em nome da fé. “Seja para pagar uma penitência, uma promessa, para celebrar um momento especial ou para viver a dinâmica da fé, que naquele lugar se torna mais vibrante, justamente pela conotação que o povo dá ao santo ou à pessoa”, esclarece. 

O ritual da peregrinação inclui cumprir obrigações espirituais como rezar, conversar, receber a eucaristia, adquirir um santinho, um objeto, receber água benta e, sobretudo, revigorar a experiência da fé. 

O pároco não tem dúvidas de que Santa Dulce já tem seus próprios romeiros e que estes existem desde muito antes da canonização. Em 2011, na ocasião da beatificação, passo anterior à santificação, cerca de 70 mil pessoas reuniram-se no Parque de Exposições, boa parte delas vindas de outras cidades. 

“O santuário dela já é bem visitado e, certamente, será mais ainda depois dessa canonização. O povo de Deus vai buscá-la mais ainda porque é um exemplo de amor”, crê Muniz.

Padre Lázaro Muniz comentou o que caracteriza as romarias (Foto: Tiago Caldas/CORREIO) Com forte influência e atuação em quase toda Salvador, Irmã Dulce deixou um legado que não se limitou geograficamente à cidade. Gente do interior buscava os serviços das Osid na capital e, ao longo dos anos, a sua mensagem de solidariedade se espalhou. Para o padre Manoel Filho, coordenador da Pastoral do Turismo, os feitos de Dulce e a própria vida dela foram muito documentados, o que também ajudou a popularizar a santa.

“Eu era menino e lembro de um especial da Rede Globo muito bonito sobre ela. Sempre se falou muito dela na imprensa, com matérias, filmes, documentários. Nem todos que foram muito falados alcançam as pessoas como um santo alcança. Não é marketing que faz um santo ser conhecido, é a fé e a fé tem uma dinâmica imponderável, é algo que não dá para ser medido”, defende ele.

A Irmã Anette Dumoulin, pesquisadora de psicologia da religião e membro da Pastoral de Romeiros de Juazeiro do Norte, vai mais além. A popularidade de Irmã Dulce é justificada pela identificação que as pessoas sentem na figura da santa, explica. 

“É impressionante essa necessidade que temos de ter modelos, liderança, pessoas que a gente olha e tem como exemplo. Irmã Dulce e Padre Cícero foram pessoas encarnadas no sofrimentos do povo, se doaram gratuitamente na causa do povo. As pessoas percebem que a caridade é que dá o tom maior à santidade deles”, comenta.

Para ela, a identificação é ainda mais forte quando se trata de pessoas que testemunharam os feitos dos santos. E é nas romarias que as pessoas reforçam esse sentimento de pertença à comunidade da fé. “É a voz do povo que clama antes de qualquer canonização. A Igreja só canoniza após haver uma canonização por parte do povo. Com a canonização, irmã Dulce se torna modelo agora também para o Brasil e para o mundo”, vislumbra Dumoulin.

Colaborou Gabriel Amorim, sob supervisão da chefe de reportagem Perla Ribeiro

*O projeto Pelos Olhos de Dulce tem o oferecimento do Jornal CORREIO e patrocínio do Hapvida.