Bastidores da ribalta, ou o dia em que Marieta Severo me afrontou

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  • Da Redação

Publicado em 6 de janeiro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Íamos, dois jovens baianos antenados com a cultura e a civilização d’antanho, duas vezes por ano ao Rio de Janeiro. Apaixonados por teatro, eu e amigo querido tínhamos o seguinte objetivo   – além, claro, de exercitar nossas libidos juvenis em flor e fogo: assistir a todos os espetáculos teatrais em cena. Éramos garimpeiros artísticos sempre à cata de alguma performance que nos siderasse – e encontramos muitas performances que nos sideraram e saíamos dessas performances exuberantes em absoluta epifania.

À época, entre meados dos anos 1970 e meados dos anos 1980, havia peça teatral para cada um nas ribaltas cariocas. Constavam do cardápio dezenas de produções que se se exibiam de terça-feira a domingo, com duas sessões às quintas, sábados e domingos. As vesperais de quinta-feira, às 17 horas, eram especiais. Na plateia lotada por mulheres grisalhas que podiam ser nossas tias, avós e bisavós, estávamos nós dois, vestidos de maneira meio hippie, cabelos à black power e cheiro de patchouli + algum chulé. [A essas trupes de velhas patuscas chamávamos  ´neves de Kilimanjaro’].

Éramos jovens, inteligentes, ‘inseridos no contexto’, – mas éramos basicamente tímidos – meio assim tabaréus na metrópole, meio assim caubóis no asfalto. Atrevidos também éramos, mas sempre tomávamos cervejinha gelada antes de assistirmos a certos, como se chamava, espetáculos de vanguarda nos quais palco e plateia se fundiam e, não raro, gentes do público eram provocadas, estimuladas, e obrigadas a contracenar com o elenco. Eu morria de medo de que isso acontecesse comigo.

A gente atrai o que teme. Aconteceu. Anos 1970, Rio, Teatro Ipanema, eu, mesmo cruzando os dedos, passei maus bocados. O espetáculo, retumbante, era ‘O Casamento do Pequeno Burguês’, dirigido por Luís Antônio Martinez Correa, irmão caçula e genial de Zé Celso, assassinado com requintes de crueldade homofóbica em 1987. A peça escrita pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht já era suficientemente iconoclasta, mas direção e elenco tornaram tudo ainda mais pícaro e orgíaco.

No elenco estelar uma Marieta Severo muito jovem, mas já possuidora de força cênica extraordinária. Lá pelo meio da peça a atriz desce do palco e provoca o público. Avança intimorata teatro afora. Na altura da minha fileira de cadeiras, ela para, e eu gelo. Finge que vai entrar na fila de cadeiras seguinte, mas acaba entrando na minha fileira de cadeiras. Quero sumir. Ela passa em minha frente, finge que não me vê, volta, me encara, bate com força a mão no meu ombro, e esbraveja: - Reage pequeno-burguês de merda! (Ou coisa parecida. O que a minha memória registra é essa frase peremptória).

Não desmaiei por que não sou de desmaiar. A atriz faz cara de nojo após me interpelar, finge que vai cuspir na minha cara, mas me deixa em paz e eu respiro fundo e quase choro.

[Devo admitir: tentei a minha vida inteira não ser ‘pequeno-burguês de merda’. Acho que consegui. Obrigado, Marieta Severo!].