Beleza interrompida

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  • Kátia Borges

Publicado em 27 de novembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há 10 meses

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Admito a incompetência em ser feliz sem bichos. Cresci cercada de cágados, alguns gigantescos e centenários, circulando no quintal de meus avós, e de uma profusão de gatos de rua que nos adotavam e que eram criados livres para ir embora e voltar quando quisessem, e de cachorros sem raça definida que se escondiam sob nossas camas e, de vez em quando, para nossa tristeza, fugiam e morriam atropelados.

E havia pássaros de todo tipo, canarinhos azuis e amarelos, que meu tio e meu pai criavam em gaiolas de arame e que eu, a doida da casa, soltava quando davam vacilo. Até uma galinha já criei num imóvel de dois quartos, a doce Gertrude que virou crônica e canja no interior da Bahia. Sem contar os pintos, presenteados por adultos aleatórios, que desapareciam sem um pio graças à desajeitada ternura das crianças.

E houve um mico, que eu bati o pé para trazer comigo, sacolejando em meu ombro numa viagem de Baixa Grande a Salvador. E os peixes dourados, indiferentes, metidos em água e superioridade. Hoje entendo que eles agem do modo certo, como essas tribos de índios isolados que nos desprezam. Hoje entendo que a generosidade pertence aos animais inocentes, que ainda se aproximam e confiam em nós.

Também confesso que não vivo bem em local sem plantas, que minha mãe lá na infância batizava com nomes de gente. Ela dizia ver a saúde de cada membro da família por sua sósia vegetal e tomava imenso cuidado para que as mudas vingassem. Em dias muito quentes, botava água gelada na boca e soprava sobre as folhas, numa conversa em solfejo, e então as podava longamente com uma tesoura.

Uma dessas plantas mora comigo ainda hoje, justo aquela que tem o meu nome. Também sem colocar os pés no chão, não vivo, sem sentir cheiro de terra molhada, que outro dia aprendi que se chama petricor. Como explicar que me apaixonei por essa palavra? Petricor. Não é como o amor, esse querer que se nomeia tontamente. É mais como se fosse flor, beleza interrompida pelo talo interrompido.

Kátia Borges é escritora e jornalista