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Best-sellers do além: como se escreve um livro ditado por espíritos?

Conheça o mundo dos autores que não estão mais entre nós

  • M
  • Moyses Suzart

Publicado em 12 de junho de 2021 às 16:09

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Reprodução

A fé remove montanhas, faz milagres e escreve livros. A literatura espírita sempre fascinou o público com sua complexidade e verdadeiros best-sellers de escritores que nem estão mais entre nós. São autores do além que, por meio dos médiuns, escrevem livros que trazem mensagens de conforto, ensinamentos, contam como é o lado de lá e ganham destaque no mercado literário. Contudo, você já parou para pensar quem deveria receber os créditos pela obra? Os espíritos ou os médiuns?

Chico Xavier, o principal nome do espiritismo no país, publicou 459 livros ao logo de seus 92 anos encarnado. Sabe de quantos ele foi autor? Teoricamente, nenhum. E isso já rendeu até processo sobre direitos autorais. Bem-vindo ao mundo literário da psicografia, onde as obras são feitas por diversos espíritos: encarnados e desencarnados.  

Primeiramente, é preciso saber como tudo funciona. Um dos mais conceituados médiuns brasileiros, o baiano José Medrado tem um jeito bem simples e didático para explicar como a conexão entre espírito e médium se transforma em uma obra de arte: “Pense no médium como um computador. Ele tem suas funções, suas particularidades, memória, entre outras características. O espírito se utiliza desta ‘máquina’ para expressar sua mensagem, seja por meio da psicografia, psicopictografia (pinturas) ou escultura mediúnica. Muitas vezes, estamos conscientes, mas funcionando como um instrumento, como o computador”. 

Chico Xavier, por exemplo, teve ao longo da vida religiosa diversos espíritos de luz que dividiram com ele os créditos. Entre eles está Humberto de Campos, que curiosamente foi jornalista, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras, até sua morte em 1934. Ele escreveu 44 livros em vida e não parou nem depois. Com ajuda de Chico, escreveu outras 15 obras psicografadas, a primeira dois anos após desencarnar. Em 1944, após o livro Reportagens de Além-Túmulo, familiares decidiram entrar na justiça pedindo direitos autorais.  Humberto de Campos foi escritor em vida e pós-morte. Foi um dos espíritos que dividiram autoria de livros com Chico Xavier (Reprodução) E a questão dos direitos autorais? “Este mal entendido jurídico foi enterrado. Achei bom falar sobre isto, pois ficou esta rusga sobre o fato na época, como se tudo tivesse terminado ali. Ficou na história como se minha família tivesse problema com o Chico e com os livros que o vovô mandou e foram psicografados. Nunca tivemos. Meu pai morreu há 23 anos e teve um relacionamento muito harmonioso com Chico, sempre se encontravam. Foi tudo um mal entendido”, disse a neta de Humberto de Campos, Patrícia de Campos, 58 anos.  

Espírita e filha de santo umbandista, Patrícia de Campos é contra direitos autorais de obras psicografadas. “Eu acho que toda mensagem psicografada é uma propriedade universal. Não imagino um foco monetário nisto, principalmente quando falamos de mensagens que transmitem amor. Estas mensagens do bem não devem ter domínio nem direitos autorais de ninguém”, completa Patrícia, que acredita na forte relação espiritual entre o avô e Chico Xavier, mas também acha que seu avô está hoje em um plano superior em que não é mais possível conversar com os vivos. “Pelo tempo, creio que vovô está num plano ainda mais distante de nós”, diz.  

Apenas uma coisa incomoda um pouco Patrícia, que prefere as obras do avô em vida. Para ela, a popularização do espiritismo no Brasil não foi apenas através Chico Xavier, mas também do seu avô no outro plano. Tudo isso se deve à obra Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, o segundo de Humberto de Campos como autor espiritual, considerada uma das mais importantes para a doutrina espírita brasileira e que hoje já está na 34ª edição.

“Meu avô em vida era um homem como outro qualquer, com erros e acertos. Era ateu, foi infiel, batalhou, saiu pobre do Maranhão, foi senador, virou Imortal. Batalhou para crescer. Mas ele, junto com Chico, dá o grande boom para o espiritismo kardecista no Brasil com este livro, um dos mais lidos até hoje. A parceria dos dois foi uma missão conjunta e de muita importância”, opina.  Neta de Humberto de Campos, Patrícia de Campos não acredita que outros médiuns possam falar com seu avô novamente (Acervo pessoal) Vale lembrar que Chico Xavier ganhou a causa movida pela família Campos. Contudo, ele nunca quis receber os direitos autorais dos livros. Todos foram doados para obras assistenciais, com registro em cartório e tudo. O processo ganhou tanto destaque no mundo jurídico que teve até livros publicados sobre o caso. Na época, a decisão foi favorável a Chico, pois o direito intelectual vale, no mundo jurídico, apenas em vida. “Nossa legislação protege a propriedade intelectual, em favor dos herdeiros, até certo limite de tempo, após a morte, mas, o que considera, para esse fim, como propriedade intelectual, são as obras produzidas pelo “de cujus” em vida. (...) Não pode, portanto, a suplicante pretender direitos autorais sobre supostas produções literárias atribuídas ao “espírito” do autor”, disse a sentença, na época. 

De fato, é difícil atribuir um direito por uma obra pós-morte. Curiosamente, o artigo 7 da Lei 9.610, que protege os direitos autorais e fala sobre obras intelectuais, até fala em espírito, mas em outro contexto: “São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”. O “espírito”, neste caso, significa talento. 

Segundo a advogada Jaqueline Sangalo, mestranda em direito autoral, é preciso saber até onde esta participação copia, altera ou utiliza trechos de uma obra originária da pessoa em vida. “É preciso analisar se a obra da pessoa em vida está sendo aproveitada, modificada ou plagiada. É um desafio analisar algo que é inédito ou a quem efetivamente pode ser atribuída a autoria. O que a justiça faz é proteger o autor originário, a obra intelectual da pessoa em vida. Agora, claro, a família pode se sentir lesada, caso a obra psicografada retrate algo que causa algum tipo de constrangimento”, explica.  

Muito mais que direitos autorais, o médium José Medrado acredita que também é preciso muita ética por parte dos mediúnicos. Para ele, as mensagens e livros que tiveram a autoria de espíritos de luz são quase como um domínio público. “Acredito que toda obra deste tipo poderia ser oferecida para caridade. Defendo que o médium precisa ter sua profissão separada de sua obra espírita e que não se sustente pelo trabalho espiritual. Eu defendo que seja exclusivamente oferecida em prol da caridade, ajudar os necessitados”, diz ele.  

O trabalho de Medrado com os espíritos é conhecido como psicopictografia e escultura mediúnica, cujo valor é revertido para obras assistenciais da Cidade da Luz, complexo multidisciplinar de auxílio ao próximo, sem fins lucrativos. “Faço pinturas sem nenhum dom desta arte. Eu pego p pincel, mas são os espíritos que pintam. A obra é espiritual, de mensagem que trazem paz e amor ao próximo”, completa.   O médium José Medrado defende que o não haja lucro com as obras enviadas pelos espíritos (divulgação) Mercado editorial que não se abala Mesmo com a pandemia, a venda de livros espíritas manteve um bom fluxo de venda. “A pandemia, de um modo geral, tem afetado todas as atividades comerciais. No entanto, a venda dos livros ditados por espíritos registra níveis de venda e de faturamento próximos aos que eram atingidos antes da pandemia do novo coronavírus. Atualmente, estamos com 75% do faturamento que a FEB Editora tinha antes da pandemia”, diz Geraldo Campetti, vice-presidente da editora da Federação Espírita Brasileira. Segundo o IBGE, o espiritismo tem cerca de 3,8 milhões de adeptos no Brasil, país que tem o maior número de adeptos da doutrina espírita no mundo.    

Diante disto tudo e independentemente se o autor está encarnado ou não, o importante é a mensagem que acalanta e inspira o leitor na obra publicada. Allan Kardec, considerado pai do espiritismo, por exemplo, nem era médium. Na verdade, era um cético que decidiu estudar fenômenos espirituais que ocorriam na França, em 1855, e ficaram conhecidos comos 'mesas flutuantes'. Após entrevistar espíritos por meio de diversos médiuns da época, Kardec acabou escrevendo o Livro dos Espíritos, a base para o surgimento do espiritismo, uma espécie de códigos estabelecidos mundialmente. “O corpo existe tão somente para que o Espírito se manifeste”, disse Kardec. Concorda?