Boechat, o Flamengo e Brumadinho: o luto do brasileiro é perene

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  • Da Redação

Publicado em 12 de fevereiro de 2019 às 09:42

- Atualizado há um ano

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“Adriano, Diego, Pedro, Marcelo, José. Aquele corpo é de quem, aquele corpo quem é? É do Tião, é do Léo, é do João, é de quem? É mais um joão-ninguém, é mais um morto qualquer. ”(1) Em tom fúnebre, Gabriel O Pensador  narra uma história dramática de corpos em uma situação tipicamente caracterizada pela tragédia.

Sim, de fato, a situação narrada pelo compositor é de uma tragédia. Dada essa premissa, cabe ao leitor encaixar quaisquer tragédias ocorridas no Brasil na última década. É indiferente. O trecho da música poderia ser destinado à morte dos dez meninos no Centro de Treinamento do Flamengo, poderia referir-se, também, ao incêndio da Boate Kiss em Santa Maria (RS), no ano de 2013, bem como ao triste episódio de Brumadinho há pouco mais de dez dias. Mas não. O trecho da música é uma denúncia em relação ao que ocorreu em Mariana (MG) há três anos. O rompimento da Barragem de Fundão se torna, à evidência, mais um caso de irresponsabilidade envolvendo grande número de vítimas no País. Mariana foi apenas mais um caso, tantos outros estariam próximos de ocorrer.

Descumprimento de legislação, flexibilização na fiscalização envolvendo segurança, gestão e gerenciamento de risco. O Brasil não aprendeu com a boate Kiss. Não aprendeu com Mariana nem tampouco aprenderá com Brumadinho. A não ser que se tome consciência de que é preciso mudar e a mudança não significa necessariamente a produção de novos instrumentos normativos conforme tenho defendido.

O Brasil tem presenciado uma sucessão de tragédias que demostram uma conjectura de irresponsabilidades sem precedentes, seja oriunda do poder público ou da inciativa privada. O caso do incêndio do Museu Nacional acompanhado dos casos recentes de motins em presídios do país demostra o descaso de governantes com a evitabilidade de tragédias.

Do outro lado, por sua vez, pessoas privadas na figura de empresários também se opõem ao cumprimento de regras básicas que impõem um grau significativo de prevenção, a exemplo do ocorrido tanto na Boate Kiss e no Centro de Treinamento do Flamengo como em ambos os casos de responsabilidade da Vale (Mariana e Brumadinho). As notícias das últimas 24 horas informam que a aeronave que caiu com o jornalista Ricardo Boechat não tinha permissão para servir de táxi aéreo como parece ter sido o caso. (2)

A sensação é de que, neste ano de  2019, o Universo chama a atenção dos brasileiros para uma virada que denomino de virada de responsabilidade do poder público e do poder privado. Já esquecemos da Boate Kiss, de Mariana, do Museu Nacional, de Brumadinho e, daqui a pouco, da morte do brilhante jornalista Boechat.

Mas nem tudo está perdido, mortos enterrados debaixo de sete palmos de chão despertam (devem despertar) o luto (de alguns).

No Mestrado que fiz em Direitos Humanos e Cidadania, na Universidade de Brasília no ano de 2018, trabalhei com a temática de violações de direitos no caso de Mariana. Fui três vezes ao local do desastre ouvir as vítimas da tragédia. Colhi relatos, fotografei o triste cenário da perda, compreendi que a fala do povo dali merecia ser escutada e documentada. Em tom de denúncia, os moradores de Bento Rodrigues falavam em impunidade dos responsáveis pelo rompimento, assim como quem fala com a consciência de brasileiro de que a impunidade leva à repetição de casos semelhantes.

As peripécias jurídicas realizadas pela Vale, BHP Billiton e a Samarco demostraram isto: a impunidade furta o caráter sancionador da prevenção.

O luto, fenômeno estudado pelo campo da psicologia, divide-se em diversas fases. Nesta seara do conhecimento, John Bowlby (3) diz que o luto se divide em quatro fases: a) a fase de choque, que pode levar poucos dias ou poucas horas, geralmente vem acompanhada do sentimento de raiva; b) a fase de desejo e busca da figura perdida, que pode durar meses ou anos; c) a fase de desorganização e desespero e, finalmente, d) a fase de alguma organização. Durante minhas visitas a Mariana (MG), presenciei as vítimas muito associadas a esta segunda fase. Os moradores de Bento Rodrigues não se contentavam com o ocorrido e o tempo todo tentavam – em vão – obter a vida perdida pelo mar de lama da Samarco.

Neste sentido, já destacava em minha dissertação que “Esta segunda fase do luto, descrita por Bowlby se assemelha à correlação trazida por Freud, em sua obra Luto e Melancolia. Para Freud (4), o luto e a melancolia andam juntos. Na melancolia, ocorre uma revolta contra a perda. Já o luto é uma reação à perda, E, em muitos casos (normalmente) este luto surge associado a uma melancolia. Esta, por sua vez, é um desânimo profundamente doloroso. (FREUD, 2013).”

Trago a ideia de luto aqui para dizer que a sociedade brasileira se encontra enlutada cujo luto se encontra em todas as fases, justamente por que as tragédias são muitas e constantes.  Ao tempo que a música de Gabriel O Pensador se torna atemporal, ela nos faz lembrar que mesmo quando corpos não são identificados (triste realidade de Brumadinho em relação a muitas vítimas), o drama humano não desaparece. Talvez ele se torne até pior. Os psicólogos dirão que o luto pela perda de alguém cujo corpo não é encontrado, é um luto que nunca se fecha. Os corpos de Brumadinho assim como os corpos dos jogadores do Flamengo são corpos de gente, de gente brasileira que está cansada de tanta irresponsabilidade. Enquanto a etimologia da palavra luto se origina de dor (5) , a palavra luta por sua vez, do latim lucta, significa esforço.

Neste momento de tanta dor que sobrecarrega as costas do povo brasileiro, é necessário um grande esforço para se livrar deste luto perene que parece não ter fim em um país de tantas riquezas minerais e de um futebol arte. O desejo é o de que toda dor envolvendo tragédia não seja perene, mas uma fase inevitável do decurso natural da vida. Se  o país continuar a tratar com naturalidade tragédias que seriam evitadas, já não será mais um tempo de luta por ela se mostrar desnecessária tendo em vista que, como conclui Gabriel O Pensador, “parece que essas pessoas já nascem mortas”.  

Diego Pereira é graduado em Direito pela UFBa (2012), pós-graduado em direito público (2013). Mestre em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB (2018). É Procurador Federal (AGU) e autor da obra Vidas interrompidas pelo mar de lama (Lumen Juris, 2018).  É Professor do Curso de Direito da Faculdade São Francisco de Barreiras (Bahia).  

Artigos e opiniões expressos nos artigos são de responsabilidade dos autores

Referências:

1 Música Cacimba de Mágoa (participação de Falamansa). Acesso em 10 de fevereiro de 2019. https://www.letras.mus.br/gabriel-pensador/cacimba-de-magoa/

2  https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/02/11/anac-abre-investigacao-sobre-acidente-de-helicoptero-que-matou-ricardo-boechat.ghtml  3 Texto digital, acesso em 24 de janeiro de 2018: https://www.skoob.com.br/livro/pdf/apego-e-perda-volume-3/livro:20092/edicao:21662 4  Histórias de vida interrompidas pelo mar de lama : desastre de Mariana (MG). Dissertação de Mestrado apresentada à UnB para obtenção do título de Mestre . Trecho citado encontra-se na página 74.    5 A maior dor do mundo: o luto materno em uma perspectiva fenomenológica. Acesso em 10 de fevereiro de 2019 em https://www.redalyc.org/html/2871/287132426010/.