Cabeça feita: tranças carregam histórias de aceitação, resistência e cuidado

Penteados roubaram a cena em gravações do Afro Fashion Day

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  • Da Redação

Publicado em 28 de novembro de 2020 às 11:31

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fotos: Edgar Azevedo/Afro Fashion Day

O cabelo é um lugar de dor e liberdade para pessoas negras, principalmente mulheres, que sofrem pressões estéticas mais violentas em decorrência do machismo e do racismo. E as tranças são um importante fator de transição: com elas, consegue-se amenizar o choque que cabelos crespos, curtinhos, armados do jeito que são, ainda geram.

Essa explicação é da antropóloga Naira Bonfim, co-fundadora da Marcha do Empoderamento Crespo em Salvador. As tranças compõem parte importante da trajetória de autoaceitação de várias mulheres negras. Caso de Leideane Oliveira, ou simplesmente Leide, uma das modelos desta edição do Afro Fashion Day. Hoje ela convive muito bem com sua carequinha, mas não imaginava que conseguiria algo do tipo quando saiu de sua terra natal, Mundo Novo, há cerca de quatro anos."Muitas meninas usam para esconder o cabelo porque começo do processo de transição é meio chato o processo de a autoestima desce bastante. Quando você coloca a trança, vê um cabelo novo, tudo muda e você começa aprender a ver que o cabelo crespo é bonito", disse no intervalo das gravações no Parque São Bartolomeu. Leide desfilou no Afro Fashion Day pelo terceiro ano consecutivo (Foto: Edgar Azevedo/Afro Fashion Day) Mas por que o cabelo natural de pessoas pretas incomoda tanto? Afinal de contas, não é um cabelo como qualquer outro? Segundo Naira Gomes, o problema é que o racismo historicamente retrata pessoas negras como sujas, feias e desleixadas, além de uma série de outras coisas ruins que fazem com que essas pessoas queiram mudar as suas características para se aproximar do que é visto belo, honesto e ideal: características diretamente atreladas às pessoas brancas."O que é que em um corpo pode ser modificado com 15, 20 reais? Não é a cor, não é a boca... é o cabelo. O cabelo acaba sendo um transito do fluxo do racismo, é onde a gente fica mais perto de parecer o que nunca seremos, que é ser branco", explica Naira Gomes.Mesmo quando mulheres tomam a decisão de adotar os seus cabelos naturais e passam pelo processo chamado de transição capilar, que normalmente consiste em cortar as partes alisadas e deixar o cabelo natural florescer, há uma dificuldade em aceitar essa nova imagem de si mesmas. É nesse momento que as tranças entram e apresentam um mundo de possibilidades, penteados e liberdade. Além disso, as tranças ajudam a dar um tempo para que o cabelo curtinho cresça.

A artista plástica Mariana Desidério também é trancista, especialista em cabelos crespos e cacheados. Mestranda em Antropologia, ela explica que a origem das tranças vem da cultura NOK, que vem da idade da pedra, uma sociedade oriunda do norte da Nigéria, no sécuclo V a.C.

No Brasil e em outros países da América Latina como a Colombia, no período da escravidão elas foram usadas de maneira muito inteligente, como forma de comunicação entre os negros. As mulheres negras tinham o costume da trançar seus cabelos e faziam os mapas na cabeça umas das outras, desenhados com as tranças para encontrar o caminho nas fugas para os quilombos. A simbologia da resistência também é muito forte nas tranças nagô.

Segundo Naira Gomes, o consenso histórico é que as tranças chegaram ao Brasil graças a negros e negras trazidos à força para serem escravizados e em várias culturas africanas as tranças também tinha função social como indicar se uma mulher é casada, está no período fértil ou é solteira, por exemplo.

"As tranças, em África, representam distinções sociais. Dá para descrever, a partir do cabelo, quem vem de família nobre, quem não é, quem faz trabalho braçal, a mulher que está fértil, a mulher casada. As tranças traziam essas distinções imagéticas e sociais", apontou.

Trancistas  Ora, tranças só existem porque há trancistas por trás delas. Fio a fio, elas dão o tom de cabelos, elevam autoestimas e escutam histórias. No Afro Fashion Day, Graziele Teles foi quem assinou as tranças que foram desde as naturais, como na cabeleira do caçula do Afro, Rafael Araújo, de 16 anos, até as sintéticas como nos looks de Willy Montenegro e da própria Leide Oliveira. As tranças sempre fizeram parte da vida de Willy Montenegro (Foto: Edgar Azevedo) Produtor de moda do Afro Fashion Day, Fagner Bispo aponta que "para além da questão estética as tranças no evento são importante para a afirmação  e resgate de nossas raízes, nossa ancestralidade e empoderamento negro".

Com cada vez mais pessoas usando tranças, cada vez mais trancistas, ou trançadeiras, surgem na cidade. E o trabalho é uma ferramenta de transformação e empoderamente financeiro para muitas mulheres. Por exemplo: o ofício surgiu na vida de Danielle Onawale, hoje com 23 anos, em 2015, quando ela ainda era adolescente e queria levantar uma grana. Assim nasceu a 7fios, Arte em Orí. 

"No começo eu contei com uma rede de colaboração muito forte. Pessoas conhecidas que serviram de cobaia e isso foi muito importante. O cabelo é nosso cartão de visita então ver que pessoas negras não querem mais esconder, abaixar e colocar cores, tranças, exibí-los mesmo, a pessoa se reencontra com quem ela é", disse a trancista. Daniele é dona da 7fios, Arte em Orí (Foto: Acervo Pessoal) Danielle diz que as pessoas estão cultivando um outro olhar para locks, os dreads, e acredita que eles vão aparecer em muitas cabeças durante o verão. A maioria dos clientes que agendaram seus serviços para dezembro solicitaram o serviço de dreads.

"Quando não foram os cultivos de dreads definitivos, foram os sintéticos, que são removíveis. As pessoas estão enxergando beleza nesse penteado, finalmente deixaram de ver como algo sujo e feio", disse Danielle.

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Assim como nas tranças,  os dreads podem ter variedade de cores, largura e tamanho. Um cardápio completo que justifica o que Danielle queria fazer desde o começo: arte em orí, que significa cabelo em Iorubá.

O Afro Fashion Day é um projeto do jornal Correio com patrocínio do Hapvida, parceria do Sebrae, apoio do Shopping Barra, Lagares e Drogaria São Paulo e apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador.