Calabar: 'Apenas a base comunitária não é suficiente', defendem especialistas

Pesquisadores de segurança pública apontam necessidade de ação integrada entre as unidades

  • D
  • Da Redação

Publicado em 5 de março de 2020 às 09:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arisson Marinho/CORREIO

A comunidade do Calabar, que fica entre dois bairros nobres de Salvador - Barra e Ondina - foi a primeira a receber uma base comunitária de segurança na Bahia, em 2011. De lá para cá, o Calabar praticamente sumiu do noticiário policial. Dos 17 locais onde há bases na Bahia, apenas lá não são registrados Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) desde 2012.

Na última segunda-feira (2), no entanto, a morte de um homem durante uma operação policial chamou a atenção novamente para o Calabar. Para alguns moradores, foi o estopim, uma vez que a comunidade está insatisfeita com as abordagens policiais feitas no local - e elas não partem dos agentes da base comunitária de segurança, mas de policiais de outras tropas.  “A gente não tem o que falar dos policiais da Base. Parecem que fazem parte de uma outra polícia”, disse uma moradora, sob anonimato.

O CORREIO ouviu especialistas sobre as diferentes formas de atuação da polícia. Para o professor Pablo Lira, que integra a equipe do mestrado de Segurança Pública da Universidade de Vila Velha (UVV) e é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mesmo nas comunidades pacificadas, há momentos em que apenas a atuação da base comunitária de segurança não é suficiente. É o caso de disputas por territórios por parte do tráfico de drogas ilícitas.

“Às vezes, atores de outros estados e até de outras comunidades da cidade podem estar fazendo investidas para dominar um território e grupos locais podem estar reforçando a proteção dessas áreas, o que é um problema para a segurança pública. Se tem ameaças de invasão do território por grupos de outros, que passam a usar armas de fogo com alto potencial de letalidade, armas de uso restrito, aí somente o policiamento comunitário não consegue dar conta do problema”, explica.

O professor Jorge Melo, coordenador do curso de Direito da Estácio/FIB, concorda. Ele explica que as ações desenvolvidas pelo policiamento ostensivo não podem ser desempenhadas pela base comunitária.“O estado não pode assistir impunemente o que aconteceu ontem (terça-feira), um grupo fechar uma rua, tocar fogo em ônibus. Tem que tomar uma providência e aí não vai ser a base comunitária a tomar essa atitude, até porque, se isso partir dela, depois é mais difícil restabelecer a relação com a comunidade”, explica.Melo acredita haver uma espécie de 'pacto silencioso’ em que os grupos criminosos respeitam a polícia comunitária porque é uma tropa que tem por princípio não entrar em confronto. O mesmo não acontece, no entanto, quando há uma ação de policiamento ostensivo. Policiamento foi reforçado no bairro após ônibus serem atacados na terça-feira (3) (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Ação integrada Para Pablo Lira, nestes casos, é preciso haver uma ação integrada, conjunta e contínua para coibir a ação das lideranças criminosas.“É relevante a atuação da repressão qualificada, mas não aquele modelo dos anos 1990 e que ainda existe em alguns locais, que é a prática de primeiro atirar, depois perguntar. Precisa ter uma repressão qualificada, combinada com policiamento comunitário, com inteligência policial, uso da tecnologia, adoção de protocolos diferenciados de uso da força policial”, completa.Na última segunda-feira (2), Marcos Vinícius Ramos Salomão, 21 anos, foi morto por policiais militares no Calabar. Um parente do rapaz ouvido pelo CORREIO confirmou que ele tem envolvimento com o tráfico e com um grupo criminoso, mas denuncia justamente um comportamento da polícia contrário ao modo de atuação recomendado pelo pesquisador. Segundo o parente, que não quis ser identificado, Marcos Vinícius voltava de um posto de saúde com a mulher e a filha quando foi atingido e estava desarmado. Para Lira, quando não há troca de tiros, é preciso que a polícia atue de forma a preservar as vidas.

Ele defende que, para combater o tráfico de drogas nestas comunidades, é preciso investir contra as lideranças criminosas. Além disso, é necessário que o policiamento comunitário conte com o apoio do que ele chama de ‘lideranças do bem’ – os líderes comunitários. “Em Salvador, que é uma cidade com uma veia cultural muito forte, é importante trazer as lideranças comunitárias que vão potencializar essas questões culturais, com a participação dos conselhos municipais de segurança pública, os líderes comunitários do bem”, disse. Base comunitária do Calabar desenvolve uma série de projetos sociais no bairro desde que foi implantada, em 2011 (Foto: PM-BA/Divulgação) De quilombo a bairro Apesar de não haver uma comprovação da existência de um quilombo na região onde agora é o bairro do Calabar, registros e moradores do local apontam a origem quilombola do bairro, informou o mestrando em História Social pela Ufba, Samuel Santos Freitas. De acordo com o livro “o Caminho das Águas em Salvador: Bacias Hidrográficas, Bairros e Fontes”, se tratava de uma comunidade formada por negros escravizados, trazidos da Nigéria, de uma região chamada Kalabaris - daí o atual nome do local.

Mesmo com a existência do quilombo, o bairro só passou por um grande crescimento populacional na década de 60. Entre o final dos anos 50 e a década de 70, cerca de 80% da população do Calabar era formada por moradores originários da zona rural e de outros bairros da capital baiana.

No momento do crescimento populacional do bairro, era comum que as pessoas saíssem da zona rural em direção à capital em busca de melhores condições de vida. Outros moradores acabaram se mudando para a região após a pressão da especulação imobiliária em outras áreas de Salvador.

“A região onde está o bairro atualmente é de vale e não sofria com a especulação imobiliária. As pessoas eram expulsas de onde moravam e as restavam locais como o calabar, que não tinha o interesse do mercado imobiliário”, diz Freitas.

Entretanto, a localidade começou a ser interesse do mercado imobiliário nos anos 70 por fazer fronteira com bairros valorizados como Graça e Ondina. A proximidade do Calabar com estas regiões era fonte de tensão. Os vizinhos ricos não desejavam conviver com a população menos abastada e, por isso, disseminavam a ideia de que o local era insalubre e ocupado por marginais. 

A partir da forma como o local era retratado nos veículos de comunicação, os moradores iniciaram um movimento de questionamento que resultou na formação de um grupo de jovens, na década de 70, explica o mestrando em História Social pela Ufba, Samuel Santos Freitas.

O conglomerado de jovens originou a associação de moradores do Calabar, no início da década de 80. Com a movimentação política, a população do bairro fortaleceu a luta pelo local, com a manifestação em prol do direito à moradia e a infraestrutura, em 11 de maio de 1981. Como fruto do protesto, a Prefeitura, à época gerida por Mário Kertész, iniciou as obras de urbanização no Calabar.

Um ano depois, em 1982, o movimento criou a escola aberta do Calabar, que até os dias de hoje educa crianças do bairro. “A escola tinha como objetivo empoderar essas crianças e pré-adolescentes, sabemos a dificuldade de moradores da periferia conseguir os objetivos. Nos anos 80, quase nenhum morador tinha nível superior e hoje temos uma gama enorme de pessoas formadas pelas universidades. Isso dá um orgulho danado”, pontua Nilza de Jesus Santos, que é ex-presidente da associação de moradores do bairro.

Desde que começou a lecionar no bairro há 35 anos, Nilza observa a evolução da infraestrutura do Calabar, que, para ela, é resultado da luta de seus moradores. "O Calabar nunca teve a estrutura imobiliária que possui agora. Atualmente, ele tem cara de bairro. No passado, o local sofria com problemas estruturais, como o esgoto a céu aberto", afirma Nilza.

Também foi na década de 80, que os moradores do Calabar começaram a perceber o aumento do uso de drogas no bairro, afirma o pesquisador em História Social. “Com o consumo de drogas, os líderes da comunidade começaram a criar ações para diminuir o uso de entorpecentes, com palestras e discussões sobre o tema”, explica Freitas.

Em 1987, a família Floquet começou a aparecer no noticiário atretala ao tráfico na região. A ligação da família com os holofotes do crime começou quando uma guarnição da PM, comandada pelo tenente Paulo Cunha invadiu o Calabar, atrás de ladrões de carro. Três homens foram presos - dois deles apareceram mortos - e o encanador Jorge Luiz Floquet, nunca foi achado, embora um fotógrafo do extinto Jornal da Bahia, Paulo Neves, tenha registrado sua imagem sendo levado pelos policiais.

Desde então, outros membros da família envolvidos em tráfico e roubos a bancos foram mortos. Entre eles, o assaltante de banco, José Floquet, vulgo Negão, e Leandro Floquet, acusado pela polícia de ser o mentor de chacina do Alto das Pombas, em junho de 2008. Em dezembro de 2019, Edeilson da Silva Miranda, conhecido como Coco, foi morto. Ele era apontado como um dos últimos dos Floquet. Atualmente, a facção Comando da Paz (CP) detém o domínio do tráfico no Calabar. A rival Bonde do Maluco (BDM) atua no Alto das Pombas.

Até hoje, apesar da pacificação, a questão do tráfico ainda existe na comunidade. Moradores relatam que jovens envolvidos com o tráfico respeitam a história do Calabar e sua luta por melhorias e direitos. É como se um houvesse sido firmado um acordo entre a comunidade e quem atua na ilegalidade para manter a boa convivência no local. "Todo mundo passa para lá e para cá. Nunca houve problemas na escola e na biblioteca, nós somos respeitados", afirma uma moradorora do bairro.

*Com orientação do chefe de reportagem Jorge Gauthier