Carla Perez e o prato duralex no Jô e outras ‘fake news’ que a Bahia acreditou

Tenha medo desse texto e da previsão de Mãe Dinah sobre a Estação da Lapa

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  • Da Redação

Publicado em 19 de maio de 2019 às 06:30

- Atualizado há um ano

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A Bahia deve sua liberdade a uma ‘fake news’. Exagero à parte, e usando o sentido mais amplo e irresponsável do termo, dá pra dizer que foi a mentira soprada pelo corneteiro Lopes, na Batalha de Pirajá – sugerindo poderio para “avançar e degolar” – que fez os gajos adversários, à beira de nos subjugar, correr do pau e começar a perder a guerra.

O caso do cabo corneta, que desobedeceu seu comandante, após este lhe dar a ordem de pedir penico, é uma pérola tão extraordinária que parece inventada, embora haja bases concretas que a sustentem.

Em ocasiões de dúvida, para descortiná-la e evitar o revés numa batalha (inclusive de narrativas), cabe seguir fontes confiáveis, e, no caso acima, há até testemunha ocular da história: Ladislau dos Santos Titara, militar, historiador e poeta respeitável, autor do Hino ao 2 de Julho, que contou e recontou o tal blefe marcial, datado de 8 de novembro de 1822.

Quase dois séculos depois, mil outras anedotas continuam a se espalhar pela Bahia, mas já sem o mesmo cuidado historiográfico – para usar um termo da coluna passada, em que mostrei Maria Quitéria indo à guerra lutar ao lado de um soldado-namorado.

Duralex e hobby de dormir  Se isso era novidade, uma certa entrevista de Carla Perez a Jô Soares é velhamente conhecida e disseminada, ainda que ninguém a tenha registrada.  Fotos: Divulgação Em todo lugar, há quem confirme as seguintes perguntas feitas pelo apresentador e respondidas pela dançarina: Qual o seu prato preferido?  Duralex, porque não quebra.  E qual o seu hobby predileto?  É um preto de bolinhas brancas. Essa, no caso, é a minha versão de cor do hobby, mas há dezenas delas – rosa, vermelho ou preto ouço com mais frequência.

No YouTube, alguém retado com o que julgo também ser uma mentira se retou (mais que eu) e publicou um vídeo intitulado “Carla Perez e as entrevistas fake news”, no qual o narrador cita certa perseguição à eterna Loira do Tchan. 

Cravou que era mentira, e acabou enquadrado. “Existiu sim o do hobby. Eu assisti e era cor de rosa”, dizia um comentário no vídeo. “Claro que existiu, ganhou quanto pra defender”, perguntou outro, irritado. “Pois eu assisti esse programa é a pura verdade, inclusive Jô jogou sua caneta para cima, pois não aguentou. Se sumiu, removeram”, presumiu um terceiro, fazendo o soldado recuar: “Tem certeza? Assisti todas as entrevistas completas e não achei. Será que foi ao ar?”Tentei não deixar a história assim, no ar, perguntando às assessorias de Jô e de Carla, que consultaram os envolvidos e, até o fechamento da edição, não deram posicionamento (se ocorrerem, atualizo aqui). 

Pertencimento O lado bom é que a resenha vive, e a posição que esses boatos ocupam em nossa memória, pra lá de curiosa, nos dá certa noção de pertencimento. 

Veja: se eu citar um padre de uma igreja aristocrática que tinha uma renca de filho, quase todo mundo por aqui vai associar a determinada pessoa.

Este e outros causos são, pois sim, boatos de estimação, que só circulam entre quem é do bando baiano – nesses casos, mais até soteropolitano. 

A história de que Ivete Sangalo foi parar na emergência do Hospital Aliança, certa feita, também é um clássico que, eu não lembrava, mas a própria cantora já chegou a comentar, numa entrevista à Revista Veja, em 2013. Nela, deixou claro que nunca fez uso de droga alguma."Não uso, não gosto, não gosto do ambiente delas. Cansei de ouvir história de que o enfermeiro que é amigo da vizinha da prima de alguém me atendeu num hospital com overdose.  Parte do meu público é adolescente, e tenho medo que eles achem que preciso disso para fazer o que faço no palco. (...) Não poderia ter 20 anos de estrada com esse vigor se usasse droga. (...) Não tenho relação nenhuma com droga", comentou, na ocasião.Quem disse? Expandindo o sentido de ‘fake news’ para crendice popular, só nós sabemos, por exemplo, que sentar em lugar ainda quente, após alguém acabar de se levantar, pega doença! Nos buzus de Salvador, não à toa, a galera não desaba de vez no assento recém-vago: fica com a bunda suspensa por um tempo.

No entanto, vou cometer a inconfidência de consultar a turma da ciência e ver se essa balbúrdia procede. Como não sou menino nem oreba, fui logo atrás do cara que descobriu o vírus da zika no Brasil. Para o médico infectologista Antônio Bandeira, professor coordenador da Infectologia da FTC Salvador, não há perigo em substituir, imediatamente, um rabo quente.“Isso realmente é uma crendice. Não tem nenhum respaldo científico. O indivíduo quando ele senta num lugar, ele está frenquentemente vestido, então, não existe nenhuma chance de transmissão de nada dessa forma. O que dá essa sensação é porque o lugar fica quente porque nós somos animais mamíferos de sangue quente. A nossa temperatura gira em torno de 37 graus, e a temperatura ambiente em torno de 23 a 26 graus, então sempre o local vai ficar mais quente”, dá Bandeira, tranquilizando geral.Mas, enfim, currículo não ganha jogo, e é sempre bom ter uma contraprova. Consultei então um entendido em Física pra saber se a temperatura pode sustentar o que dizem por aí. Geofísico do Serviço Geológico do Brasil, o baiano Jairo Andrade comenta sobre o ponto de vista do fogo no rabo. 

“O calor gerado com o corpo em contato com o banco é um calor que vai chegar, no máximo, à temperatura do corpo, e um calor da temperatura do corpo não provoca nenhum dano a uma terceira pessoa que, porventura, venha a entrar em contato com aquele banco aquecido. Não existe nenhum problema em relação a questões físicas”, sustenta Jairão.

Ainda assim, não estamos convencido, tá ok? Leva, motor!

Difamação, temor e tragédia Nossa mente, sabe-se lá por que, tem predileção por difamação e tragédia (ou ao menos o medo de que algo ruim aconteça), como a versão de que Mãe Dinah previu a Estação da Lapa ruir.

Adoro essa história, e achava que era uma lembrança inventada na minha pós-infância, traumatizada pela morte dos Mamonas Assassinas.

Mas que nada! Com a ajuda de Bozó, consultei os arquivos do jornal e achamos um bróder, lá em 1999, fazendo a seguinte observação, no finado Espaço do Leitor:“Como dizem, ‘brasileiro só fecha a porta depois de roubado!’. (...) A tal Estação da Lapa (...) já é uma ‘senhora de idade’, que está sofrendo com as infiltrações e os abalos das intermináveis obras do metrô. (...) A ameaça de desabamento é iminente e se os poderes públicos não acordarem a tempo, a triste profecia da Mãe Dinah irá se concretizar”. Vira essa boca pra lá!

Agora é sério Lá no início, adverti que estava usando o sentido mais amplo e irresponsável do termo ‘fake news’, mas não é suficiente para sanar meu desserviço, como alerta um nobre amigo. “Velho, só um toque. Acho bom ter cuidado ao tratar ‘fake news’ com ironia”, avisou/ameaçou.

Como tenho medo dessas coisas, sempre cedo. E, mesmo tarde, no ocaso destas mal traçadas, abro espaço para que ele explique que “é um termo que vem sendo muito usado politicamente para fuder com o jornalismo”. Boca suja. Mas vá, continue... 

“Os governos têm conseguido, justamente, tornar o termo sinônimo de ‘boato’, quando não é. Boato é algo que surge no popular e se espalha. ‘Fake news’ é algo deliberadamente inventado e com estratégia de distribuição pensada para espalhar desinformação. Aí, os governos se apropriaram para chamar de ‘fake news’ qualquer matéria jornalística com a qual não concordam. Então, nós, jornalistas, acho que temos que ter muito cuidado para não usar o termo de maneira equivocada”. 

Tá vendo você, querendo brincar com coisa séria? Eu sugiro, então, que desveja esse texto todo e leia isso que o meu nobre amigo indicou.

E aproveitando a guerra aberta contra o mau uso do termo, vale destacar que somos tão bons em ‘fake news’ que, como lembra meu amigo André Uzêda, criamos a 'anti-fake news': pra todo “vou botar só a cabecinha”, na Bahia, até vovó já dizia: “p**a não tem ombro”.