Carnavalódromo, ‘primeiro camarote’ do Carnaval de Salvador, foi ideia de paulista

Fórmula de 'festa dentro da festa', em estrutura temporária, e não apenas para convidados foi proposta há 30 anos

Publicado em 13 de março de 2022 às 06:03

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Reprodução/Arquivo CORREIO

Passados 19 carnavais, o Big Brother Brasil vivia um limbo após sua edição mais fuleira: a audiência e repercussão do BBB19 foram de centavos, e algo precisava mudar para o programa não acabar. Foi aí que, em 2020, a Globo decidiu fazer uma alteração importante no formato. Dividiu a casa entre anônimos e celebridades, chamou um lado de Pipoca e o outro, dos bacanas, de Camarote.

O conceito da divisão social, oriundo do Carnaval de Salvador, era tão claro para qualquer brasileiro(a) que nem precisou explicar nada. Da Pipoca, faziam parte os que não tinham, em tese, grana e fama; do Camarote, as celebridades, com toda carga semântica do título. O BBB ressuscitou, e hoje, na terceira edição de novo formato, ganhou o status de pizza: até quando é ruim, é bom, e o povo consome.

Agora, voltando as câmeras para a origem do tal camarote na Bahia, parece que ninguém registrou o Ano “Dhomini” do modelo que ora predomina. Até quem pesquisa sobre o assunto, ou acompanha a festa evoluindo há décadas, não sabe onde começou a camarotização – ao menos do jeito que é hoje. 

Rainha pioneira Ninguém lembra, mas há uma aposta quase consensual: o camarote de Daniela Mercury. A iniciativa da Rainha Má foi importante para acelerar o processo, mas só vem em 1995. Enquanto existiu, o Camarote de Daniela foi um dos mais concorridos, porém não cumpriu requisitos básicos da fórmula mais reproduzida, que domina a folia atualmente. Isto é, uma estrutura temporária, que permite acesso de qualquer pessoa (se pagar), e que além de segurança e vista da passagem dos blocos e trios, também oferece aquilo que chamam de ‘festa dentro da festa’ nos intervalos das atrações da rua – um som ambiente, que seja.

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Como lembra Licia Fabio, ex-promoter do espaço, o Camarote de Daniela nunca foi pago, era restrito a convidados. “A Licia Fabio Produções já fazia muito camarote pra cervejaria, supermercado, e aí a gente sentou um dia para criar o Camarote de Daniela, do qual fomos sócios. A gente se espelhava muito no Camarote da Brahma, fazia releituras”, diz Licia, ao citar o trabalho feito pelo empresário paulista José Victor Oliva no espaço exclusivo da marca de cerveja, no carnaval carioca.

“Era só para convidados. Não era vendido. Eu acho que foi por isso que não deu certo”, brinca a promoter sobre o espaço na Barra que fez sucesso por 18 carnavais.

Ideia de paulista Mas a edição do Correio da Bahia de 27 de fevereiro de 1992 (quinta de folia) traz uma novidade para a época que, ao que tudo indica, parece novidade até hoje. Na matéria “Carnavalódromo, a opção para ‘festa de camarote’”, aparece a descrição do projeto inspirado também na Sapucaí, porém formatado para a festa baiana. No texto, a ideia atribuída ao advogado paulista Geraldo Almeida prevê um espaço inédito em que “os foliões poderão assistir de camarote, literalmente, ao desfile de trios e blocos no Centro, e ainda brincar nos intervalos, graças a um potente equipamento de som instalado no local.”“O Carnavalódromo ainda está em fase de montagem, mas o advogado garante que na sexta estará tudo pronto. Este novo ponto de encontro tem 12 camarotes instalados em três níveis, com capacidade para 30 pessoas. Vai funcionar no Estacionamento Apolo e os foliões terão vista panorâmica para a Rua Carlos Gomes. (...) Dezoito seguranças vão garantir a tranquilidade no local, que conta com sanitários exclusivos”, segue o texto, que ainda cita o fracasso junto às marcas.“Apaixonado pelo Carnaval, o paulista Geraldo Almeida idealizou o espaço alternativo há muito tempo, mas só este ano pode desenvolver o projeto. Ele tentou conseguir o patrocínio de várias empresas, mas todas alegaram que não dispunham de recursos ‘apesar de adorarem a ideia’”. O nome, Carnavalódromo, claro que não pegou (ruim demais), mas a tal da ideia...

Deu certo mesmo? Ao me deparar com o recorte, saí fazendo a pergunta básica: ‘qual foi o primeiro camarote pago do Carnaval?’ As fontes foram muitas, especialmente quem durante anos se envolveu diretamente na organização da festa, como Merina Aragão e Eliana Dumet, além de empresários, artistas, outros jornalistas, como meu colega Osmar Marrom Martins… Resposta quase em consenso: não lembro desse camarote, não sei quem é Geraldo Almeida.

Na OAB de São Paulo há 10 advogados com Geraldo Almeida no nome. Liguei para os escritórios que encontrei, não achei nada. Até que Chico Kertész, diretor de ‘Canto do Povo de Um Lugar’, doc fantástico sobre o Carnaval da Bahia, me fez um alerta que talvez explique a falta de registro: “Não deve ter tido. Parece nota (no jornal) de coisa que não foi adiante”, deduziu. Concordei, mas se rolou, e você foi nesse Carnavalódromo, me conte.

Pré-história Vice-reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisador da economia da folia, o professor Paulo Miguez também foi um dos que incomodei para tirar a limpo essa história. Como os outros, desconhecia esse projeto, mas como entende muito do riscado, falou sobre aspectos ancestrais da camarotização. “Os camarotes são uma versão contemporânea dos velhos clubes sociais, com algumas diferenças. No clube não entrava quem pagava [na hora], entrava quem era sócio. E o clube era um território festivo afastado da rua”, comparou Miguez, lembrando ainda que a estrutura temporária começou nos anos 80, com o Camarote da Bahiatursa, no Campo Grande, só para autoridades e agregados.Professora de Relações Públicas da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Bruna Lopes é autora da dissertação de mestrado “‘Agora assista aí de camarote’: como os camarotes reconfiguraram a rede de negócios do Carnaval de Salvador”, apresentada na Ufba em 2019. Foi ela quem consultei para saber o que mudou a partir do momento que o camarote entrou em cena – ao que supomos, há exatos 30 anos.

“A forma de curtir o Carnaval mudou e vai continuar mudando. Porém, o Carnaval é plural e multifacetado. Não existe um padrão de folião. A grandeza da festa (seja nos aspectos culturais, econômicos e sociais) não permite isso. O camarote é apenas um exemplo disso. E é por isso que precisamos da pipoca, do bloco de trio, do trio independente, do camarote e do bloco sem corda. O que vejo é que há um desequilíbrio entre estes atores, gerando discussões e impasses. Se os empresários, governantes, artistas e profissionais da área não entenderem isso, ficaremos no mesmo lugar”, comenta a especialista, sem imunizar, mas sem também colocar o camarote direto no paredão.