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Tribunal Marítimo diz que responsáveis pela lancha sabiam da instabilidade do barco, que não passou por teste de inclinação. Dezenove pessoas morreram
Marcela Vilar
Publicado em 21 de agosto de 2020 às 20:20
- Atualizado há um ano
São quase três anos desde o acidente da embarcação Cavalo Marinho, na Baía de Todos os Santos, evento que chocou todo o país e causou 19 mortes, deixou 59 pessoas feridas, além de sequelas e traumas para os que sobreviveram e perderam familiares.
Após um ano e meio desde o início do inquérito, o Tribunal Marítimo da Marinha do Brasil, que fica no Rio de Janeiro, julgou, nessa quinta-feira (21), três responsáveis pela tragédia: o engenheiro Henrique José Caribé Ribeiro, responsável técnico pela lancha, Lívio Garcia Galvão Júnior, dono da embarcação, e a empresa CL Empreendimentos, proprietária do barco.
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A investigação apurou que a principal causa da tragédia foi a instabilidade da embarcação por “problemas construtivos”, entre eles, um lastro solto. Isso não conseguiu ser detectado porque, segundo o julgamento, o barco não passou pela prova de inclinação nem pelo estudo de estabilidade depois de ter sido reformado. Os responsáveis teriam ciência desse fato e, mesmo assim, permitiram que a lancha fizesse a travessia.
Além do forte balanço das ondas, o agravante para o acidente foi a concentração de pessoas na parte de cima do barco, que, aliado ao lastro solto, fez com que ele tendesse para a esquerda e tombasse em alto-mar. Das 116 pessoas que estavam à bordo, 95 estavam na convés superior e 25 no inferior, de acordo com a estimativa do comandante Osvaldo Coelho Barreto, que foi inocentado no julgamento.
A partir dessas conclusões, a corte proferiu pena para o engenheiro Henrique Ribeiro, que está proibido de exercer a função de responsável técnico em qualquer Capitania de Portos por cinco anos.
Ao sócio da CL Empreendimentos, Lívio Galvão, foi aplicada uma multa de R$ 10.860 reais - a ser corrigida pelo setor de execução da corte - e a empresa à qual a Cavalo Marinho I pertencia não poderá mais construir barcos, pois teve o registro de armador cancelado pela Marinha. “A decisão foi positiva, independente da demora, que foi absurda. Depois de três anos a gente não tinha nenhum retorno desse acidente. A gente aguarda agora que, com essa decisão e esse julgamento, o processo seja resolvido. Eu acredito que não tem mais por que recorrer. Já tem todas as provas do que aconteceu”, opina a biomédica Aline Silva Souza, que perdeu o pai, Antônio de Jesus, no acidente, em 24 de agosto de 2017. Em relação às indenizações, Aline diz que a situação causa indignação, por conta do atraso do Poder Judiciário em tomar as providências. “É revoltante quando a gente vê que nada foi feito. São famílias que estão sem apoio nenhum, que perderam a base familiar que provia alimento, que eram a fortaleza, e viram suas vidas mudarem”, conta a filha da vítima.
Já Paulo Pimentel, que sobreviveu à tragédia, não se animou com a decisão. Para ele, o comandante do barco também deveria ser condenado, juntos aos outros. “Como que em águas tranquilas aconteceu um fato como aquele? É complicado. Para mim, ele assassinou 19 pessoas”, avalia. Além disso, Pimentel espera a sentença do juiz na esfera penal para “terminar essa agonia”.
Ele também conta que não superou o trauma, pois precisa fazer a mesma travessia todos os dias. Morador de Mar Grande, Pimentel trabalha em Salvador, no Instituto Médico Legal (IML). “Eu estou sequelado mentalmente. Até hoje sonho e vejo o desastre quando passo pelo local do acidente. Passa como se fosse um filme em minha cabeça”, conta o sobrevivente. “Eu vivia à base de remédio, psicotrópicos, não dormia”, lembra.
Apesar de o resultado deste julgamento da Marinha só gerar consequências administrativas, ele será utilizado como prova para a ação penal que tramita no Ministério Público (MP-BA) e nas 46 ações indenizatórias. Destas, 36 são representadas pela Defensoria Pública do Estado (DPE).
Para a defensora pública estadual Soraia Ramos, a decisão foi positiva para poder acelerar o andamento desses processos, que estão, em maioria, parados. Alguns deles não chegaram nem a ter a audiência de conciliação. Pelos danos morais e materiais, cada ação pode indenizar em R$ 100 mil as vítimas sobreviventes e em R$ 500 mil os familiares dos que morreram. “É um passo bastante positivo, pois trouxe mais robustez para os argumentos da defensoria e há um força para ter um sentença condenatória. É uma prova bastante contundente, que mostra que eles [a empresa, o dono da lancha e o engenheiro] tinham conhecimento desse problema e assumiram o risco de colocar a embarcação para navegar”, argumenta Soraia, que é porta-voz da DPE nas questões referentes à tragédia com a Cavalo Marinho.Além de pontuar que a deveria ter havido uma fiscalização mais rigorosa da Agerba, agência responsável por fiscalizar o serviço de transporte no estado, a defensora cobrou mais celeridade nas ações judiciais.
“A gente entende que é uma comarca com um volume muito grande de processos, mas a gente espera que o judiciário da bahia julgue esse processo de forma mais célere. Essa ação em específico precisa ter uma prioridade porque foi um caso que chocou o Brasil e trouxe graves prejuízos psicólogos para quem estava na lancha e os familiares. É o mínimo de conforto, para fazer com que as vítimas não se sintam esquecidas”, pondera a defensora pública.
O advogado Antônio Roberto Leite Matos, que representa o único inocentado no processo, o comandante da lancha Osvaldo Coelho Barreto, não comemorou a decisão por discordar da sentença.
“No meu entendimento ninguém tem culpa. Foi um desastre inesperado. É impossível alguém ser condenado porque é um crime diante da força da natureza, que tem uma força maior. Foi injustiça meu cliente ser inocentado e os outros não”, considera o advogado.
Para Leite Matos, a principal causa foi a força da natureza, que, por conta dos ventos atípicos e da grande força das ondas de arrebentação, causou o naufrágio da embarcação. Não foi possível falar com o comandante Osvaldo Coelho Barreto, mas seu advogado informou que ele sofreu alguns infartos após o acidente e vive com diversas sequelas psicológicas.
Já o advogado Manoel Pinto, que defende o dono do barco Lívio Galvão na esfera cível, não quis comentar a decisão do Tribunal pois ainda não tinha visto o documento.
O acórdão oficial deve ser publicado na próxima semana, mas a decisão tinha sido publicada pela imprensa no início do dia. “Não posso falar nada porque não tenho elementos concretos e poderia fazer um juízo de valor equivocado”, justificou. Contudo, Pinto disse que pretende recorrer.
Já o advogado criminalista Vivaldo Matos, que representa Galvão no âmbito criminal, disse que não concorda com a decisão e que ela não terá reflexos no processo penal, que culpa seu cliente por homicídio culposo (sem intenção de matar) e lesão corporal.
Nesta ação, que está em fase de alegações finais, Matos também defende que a principal causa foi por forças naturais. “A defesa entende que o aconteceu não foi isso que nosso cliente não teve participação nenhuma nos fatos. Foi fruto de um evento da natureza, algo imprevisível”, declara o advogado.
O CORREIO não conseguiu localizar o engenheiro Henrique Ribeiro nem seu advogado. Procurado através de seus advogados, Lívio Galvão não quis se manifestar. Seu defensor no Tribunal Marítimo, José Washington Freire, não respondeu à reportagem até o fechamento desta matéria.
*Sob orientação da subeditora Clarissa Pacheco