Censo incomum

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  • Da Redação

Publicado em 3 de dezembro de 2020 às 15:30

- Atualizado há um ano

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João Alberto Silveira, homem negro, foi espancado e morto brutalmente por seguranças de um supermercado. O episódio violento reflete uma sociedade profundamente desigual, em que oportunidades e riscos são distribuídos de forma diferenciada a depender da cor da pele, do gênero e da condição social, seja nas relações privadas, seja nas relações públicas.

Ainda assim, comentando o mesmo fato, o vice-presidente da república afirmou em coletiva de imprensa que não existiria racismo no Brasil. Justamente por isso, as instituições comprometidas com a democracia precisam olhar criticamente para dentro. Foi o que a Defensoria Pública do Estado da Bahia fez, ao realizar o seu primeiro Censo.

Nenhum órgão precisa de novos estudos para saber se existe racismo, mesmo dentro dele, assim como ninguém mais precisa de mais pesquisas para saber que a terra é redonda e gira ao redor do sol. Porém, analisar as percepções institucionais sobre o tema pode dar chaves para formulação de políticas de enfrentamento do fenômeno, afinal, só se pode modificar aquilo que se percebe. A Defensoria introduziu esse elemento no seu censo, que assim deixa de ser comum.

O censo indica que algumas das consequências da discriminação são facilmente percebidas em todos os extratos: 82% dos negros afirmam ver que são escassas as pessoas da sua cor ocupando posições de poder na própria Defensoria ou no sistema de justiça, dado que é confirmado, em percentual semelhante, na percepção dos brancos em relação aos negros. Mais de 80% das pessoas que trabalham na instituição concordam que o racismo é decorrência da estrutura social.

Por outro lado, mais de 99% concordam com a existência do racismo no Brasil. Aproximadamente metade dos negros já perceberam ter sido alvo de suspeitas em razão da cor, contra 1% dos brancos. E 15% das pessoas negras relataram que já deixaram de entrar em um determinado ambiente, contra menos de 1% dos brancos.

Os negros relatam com muito mais frequência terem sofrido violência física em virtude da cor e por agentes estatais. Esses resultados já eram esperados, porque são notórios, entretanto, a pesquisa demonstra que os resultados são semelhantes independente do cargo ocupado e consequentemente da faixa de renda, o que reforça a hipótese de que o problema do racismo não se esgota na dimensão financeira.

Um dado interessante e que desafia gestores, agentes políticos e principalmente educadores é o fato de que algumas categorias ou situações importantes não são ainda totalmente compreendidas. Cerca de 20% dos entrevistados ainda acreditam que brancos podem ser vítimas de racismo (o famigerado “racismo reverso”); 11% das pessoas são contra as cotas; 6% dizem que contam ou riem de piadas sobre negros. Mais do que os números, surpreende nesses casos a sua distribuição relativamente uniforme entre brancos e negros, o que, mais uma vez, denuncia o caráter estruturante do racismo em nossa sociedade.

O material está disponível no site da Defensoria Pública da Bahia e merece ser analisado por todos. O trabalho demonstra que, enquanto alguns conceitos complexos são bem mais conhecidos ou intuídos do que se imagina (como a concepção de racismo estrutural), outros relativamente simples não são tão aceitos quanto se espera, mesmo entre as vítimas do preconceito (é o caso da crença na possibilidade de um suposto racismo reverso). Por outro lado, há duas notícias especialmente boas. Resta comprovado que a representatividade dos negros aumentou após a adoção das cotas. A política funciona!

Por fim, de todas as categorias pesquisadas, os estagiários, justamente os mais jovens e em menor posição hierárquica, são os que melhor dominam os conceitos sobre as dinâmicas de raça e racismo. Uma bela esperança para o futuro!

Rafson Ximenes é Defensor Público Geral da Bahia e Vanessa Nunes Lopes é Defensora Pública integrante do GT de igualdade Racial

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