Cinzas do paraíso

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  • Paulo Sales

Publicado em 18 de janeiro de 2021 às 09:05

- Atualizado há um ano

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Lembrei, na crônica da semana passada, da primeira vez que assisti ao filme A Insustentável Leveza do Ser, no chão de um cinema totalmente lotado, lá na última fileira. Em 1989, as pessoas ainda se aglomeravam nos cinemas de shopping para ver obras capazes de retorcer corações e mentes, como a de Philip Kaufmann. Se não me engano, nesse mesmo ano vi Betty Blue, de Jean-Jacques Beineix, também num cinema atulhado de gente (o extinto cine-teatro Maria Bethânia, no Rio Vermelho). Era uma experiência adorável, que se estendia aos bares para onde íamos depois das sessões.

Ali nas mesas, escoltado por uma cerveja gelada ou um gim tônica, eu trocava impressões com a namorada e os amigos sobre o que tínhamos acabado de assistir. As noites invadiam o arco da madrugada e as conversas, entre acaloradas e bem-humoradas, rumavam como barcos bêbados ao sabor das referências recém-apreendidas na tela - ou trazidas pelos livros que estávamos lendo e discos que estávamos escutando. Kerouac, Bukowski, García Márquez, Steinbeck, Rolling Stones, Bob Dylan, Renato Russo, Cazuza. E também o desejo de um dia ler Sartre, Proust e Borges e ver mais filmes de Truffaut, Godard e Fellini. Ainda não havia para mim Hemingway e Fitzgerald, muito menos o jazz de Miles, Coltrane e Monk.

Os bares eram nosso habitat. Íamos habitualmente ao Extudo, no Rio Vermelho (mais intelectualizado), ou ao Tesão & Cia, em Pituaçu (mais alternativo). Mas tinha também o Villeta e o Stella Maris (ambos na Pituba), o Mordomia (na Ladeira da Barra) e o Ponte de Safena (no Farol), entre tantos outros. O indispensável para nos sentirmos bem se resumia ao combustível etílico servido de maneira adequada e a petiscos de bom custo-benefício.

Naquele alvorecer dos anos 90, Salvador era uma cidade efervescente, que mesclava seu natural provincianismo a um agradável clima mundano e cosmopolita, trazido pelos turistas de Verão. Ouvia-se samba-reggae em todos os cantos e rock’n roll em bibocas escuras e enfumaçadas. A cultura negra se afirmava em canções que viraram hinos. Estávamos na moda. Um grupo de amigos montou uma banda, a Úteros em Fúria, que arrebanhava multidões e protagonizava shows que eram pura catarse. Parecia uma festa sem fim. Mas acabou.

Em 1994, fui morar em São Paulo e cursar jornalismo. Quando voltei, cinco anos mais tarde, Salvador estava mudada. Eu estava mudado. As referências eram outras, os amigos também. Mas não deixei de exercitar o delicioso pecado da boemia em terras paulistanas. Havia muito mais cinemas e uma oferta espantosa de filmes de arte. As livrarias, lojas de discos, bancas de revistas e locadoras de filmes eram enormes e as conversas de bar exigiam um conhecimento de mundo que eu então só vislumbrava, como um idioma difícil que ainda não dominamos.

Saía do cinema e me deparava com a noite fria e enevoada da Avenida Paulista. Acendia um cigarro, doce delito, e me encaminhava para a minha segunda casa no exílio: o Puppy. Então pedia uma Serramalte e um provolone à milanesa ao garçom que já me conhecia, espiava as raparigas em flor nas mesas ao redor e aguardava a chegada dos amigos, que invariavelmente apareciam por lá. Pronto: estava no paraíso.