Com facões, grupo invade e ocupa sítio no CIA que recebia pessoas em situação de rua

Instituição que funciona no local não é proprietária do terreno e nem sabe a quem pertence

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 8 de julho de 2020 às 05:15

- Atualizado há um ano

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. por Foto: Divulgação/Resgate em Cristo

Era madrugada da última sexta-feira quando um grupo de mais de 30 pessoas abriu um buraco no muro e invadiu o sítio onde funciona a Casa de Acolhimento Resgate de Cristo, na região entre os bairros de São Cristóvão e Cassange, na Rua Romã do CIA. Na hora do fato, por volta das 5h, nove pessoas dormiam no espaço, inclusive o coordenador Lucas Cardoso de Jesus, mais conhecido como Pastor Lucas Benção. “Pegaram a gente desprevenido. Cercaram a casa com facão e foice, derrubaram portas e janelas, me ameaçaram. Falavam amedrontando o pessoal, gritando: ‘Sai, sai, vou dar 10 minutos, senão vai morrer’. Eles se diziam donos do sítio e jogaram nossas coisas no meio da rua”, recorda o coordenador.[[galeria]]

Conforme relata Lucas, primeiro um grupo à pé arrebentou as portas e outra parte chegou em seguida em carros. Após a entrada e expulsão dos internos da casa, o grupo colocou no meio da rua os móveis e eletrodomésticos da instituição, e fechou o portão metálico do sítio. O pastor diz que em nenhum momento os envolvidos apresentaram documentos provando serem donos do terreno. A polícia militar foi chamada pelo 190 e esteve no local, mas o sítio não foi retomado.

A história é complicada. A casa de acolhimento, de fato, não é proprietária do sítio. O lote estava abandonado há cerca de 10 anos, afirma Lucas, e há três ele e seus apoiadores começaram a capinar o matagal do espaço para reuniões de trabalhos de recuperação de dependentes químicos. Evangélico, o coordenador diz que o local servia de acesso para roubos de galpões, além de funcionar como ponto de drogas, prostituição e desmanche de veículos.

“A própria comunidade tinha medo de passar pelo local. A gente via que não tinha ninguém tomando conta e começamos a zelar, recuperamos a casa que tinha, colocamos telhado. A gente não quer esse terreno para venda, é para dar continuidade a um projeto de salvar vidas. Estou com meu sentimento abalado”, conta ele.

Parte dos acolhidos da instituição que dormiam no sítio foram levados para um abrigo de idosos na mesma região e os demais estão sob ajuda de outro pastor evangélico. Para que os bens colocados para fora da casa não fossem roubados, Lucas diz ter pagado, mesmo sem condições, um carreto para transportar os móveis até o espaço parceiro do abrigo de idosos. 

Sem solução para a retomada do local junto à Polícia Militar, no mesmo dia o coordenador prestou queixa na 10ª Delegacia (Itapuã), onde foi registrado um boletim de ocorrência com denúncia de agressão, ameaça e danos ao patrimônio. Na manhã desta segunda-feira (6), os acolhidos pela Resgate em Cristo e simpatizantes fizeram um protesto para reaver o terreno.

O delegado Nilton Tormes, titular da Delegacia de Itapuã, esclarece que, se o grupo de acolhimento não tem registro de que a propriedade é deles, não há o que se discutir. “Se a área não for deles, não tem muito questionamento. Não há legitimidade em ocupar um terreno que não é seu. Mesmo sob a justificativa de fazer uma bondade, não se pode invadir terreno alheio”, diz o delegado, que ainda não viu a queixa na delegacia. No caso das ameaças que os ocupantes do terreno dizem ter sofrido, o titular da 12ª Delegacia afirma que esse mérito será posteriormente avaliado. “É triste, dá vontade de desistir… A humanidade chega assim destruindo um trabalho que não sabe quanto custou, o tanto que a gente sua para isso. Eu já fui usuário de drogas, hoje estou com 14 anos sem usar nada. As pessoas que cuido me veem como exemplo, eles me veem como espelho e nós juntamos as nossas forças”, argumenta Lucas.Advogada voluntária do Grupo Amar, que apoia a casa de acolhimento, Danielle Cerqueira conta que membros da Resgate em Cristo já tinham intenção de entrar com ação para tentar a propriedade do terreno por usucapião. Segundo ela, os próprios vizinhos do terreno aprovaram que ele fosse habitado porque antes o local era inóspito. Ela se colocou à disposição para ajudar a reaver o espaço, mas é difícil iniciar um processo contra o grupo invasor, já que eles não se identificaram.

Um homem chamado Gilvan Oliveira, que se apresentou como advogado deste grupo que reivindica a posse, disse que eles não têm relação com o Movimento Sem Terra (MST). Para a advogada, a ocupação do Resgate em Cristo no sítio pode ter chamado atenção quando a instituição resolveu pintar a fachada com o nome do projeto. O nome da instituição, inclusive, foi apagado no dia seguinte à invasão.

A Polícia Militar informou, por meio de nota, que os policiais encontraram o advogado e o administrador do terreno, que apresentaram uma escritura registrada em cartório. A PM orientou à pessoa que invadiu o terreno a retirar os pertencesde  dentro da propriedade. “Quando a guarnição chegou no local não encontrou nenhuma situação de violência ou ameaça entre as partes, mas mesmo com a situação tranquila, permaneceu com uma viatura para oferecer mais segurança”, descreve a PM-BA. 

O advogado Gilvan Oliveira, que defende o grupo que reivindica posse, ainda disse que o imóvel não pertence a um grupo, e sim a uma Cooperativa, a qual ele não quis divulgar o nome por não querer associar a imagem dela com a situação encontrada no Centro de Acolhimento.  “O imóvel sempre esteve em posse e uso pelos cooperados associados à Cooperativa que representamos. Inclusive estava em andamento o projeto para a reforma no imóvel. Porém, com o início da pandemia do Covid-19 (março/2020) as atividades foram paralisadas e foi nesse período que as pessoas do Centro de Acolhimento adentraram ilegalmente no imóvel”, justifica. 

“Na última semana, no intuito de retomar as atividades, representantes da Cooperativa, ao chegarem no imóvel, foram surpreendidos com 4 pessoas dentro da área, alegando que ali era um Centro de Recuperação. Conforme se pode notar pelas fotos em anexo, essas pessoas estavam em condições desumanas, com moradia e infraestrutura precárias. Não há sentido nenhum de chamar aquela situação de Centro de Acolhimento. Por fim, a Cooperativa a qual representamos, ao proceder a retomada do imóvel, defendeu o seu direito constitucional de propriedade. O assunto está sendo tratado na justiça”, completa a firma Gilvan Oliveira Consultoria & Associados, onde atua o advogado. 

O CORREIO soliciou à Sefaz (Secretaria Municipal da Fazenda) o documento de registro de propriedade do terreno, mas não foi enviado até o fechamento desta reportagem. 

*Sob supervisão da subeditora Clarissa Pacheco