Com quantas putas pobres se faz um mundo sem desperdício?

Confira a receita de um delicioso 'arroz de puta pobre', que usa sobras do dia anterior

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  • Da Redação

Publicado em 23 de maio de 2021 às 06:58

- Atualizado há um ano

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Arroz de puta pobre é uma ótima pedida para aproveitar sobras (Foto: Bento Simas/Divulgação) Perdi a conta de quantas vezes já contei a história do Arroz de Puta Rica, com direito a várias licenças poéticas. Isso porque, além da curiosidade que o nome da receita desperta, eu sinto uma imensa admiração é pela puta pobre, a verdadeira protagonista desta história.

Diz que foi em algum lugar de Goiás. Cezarina? Santa Rita do Novo Destino? Abadiânia, Ceres, Indiara, Mara Rosa? Fato é que havia ali um puteiro modesto, mas que gozava de ótima reputação, cuja proprietária cozinhava muitíssimo bem. Dos seus quitutes, um deles começou a ganhar tamanha fama, que atraía para o estabelecimento apetites para além dos meramente sexuais. E vejam vocês, era um arroz de sobras cuidadosamente guardadas na geladeira da distinta casa de facilidades em potinhos de margarina Claybom (pois sustentável) identificadas nas tampas por etiquetas de fita crepe escritas a bic: galinha caipira com guariroba, boi ralado, sardinha de pressão, arroz com pequi, lombo recheado, bife ao molho, toicinho de feijão. A nossa heroína não dava ousadia a desperdício e transformava qualquer ponta em deliciosos e inesquecíveis restodontê.

Nisso, quando a puta rica lá do outro lado da cidade, começou a receber notícias de seus próprios clientes (!) da tal desclassificada do Capão Verde, ela não se deu. Ah, é? Perainda! Ô, Jozina! Diga pra seu Bié pra matar ema, seriema, veado, paca, tatu e até tamanduá. Anotou, Jozina? E outra: diga pra seu Altino que vou querer jaú e pintado fresco, só o filé! Ah! Encomende o melhor requeijão de barra e a melhor rapadura de Dona Natalina, e a cachaça de murici de Seu Domitilo, que aqui além de um arroz de puta rica RIQUÍSSIMA, ainda vai ter aperitivo e sobremesa. Anotou tudo, Jozina? Agora tome o seu rumo e parta para a cozinha para criar o arroz mais granfino de todo o estado do Goiás, quiçá do Brasil! Agora chispa! Avia, mulher!

E como tinha dinheiro para colocar na AM e FM, para imprimir panfletos na Gráfica Jatobá e distribuir nos pontos de taxi e saída das repartições públicas, foi o Arroz de Puta Rica da invejosa e vigarista vilã que bombou e ficou para a história.

Mas chique pra mim são as putas pobres que fazem sopa e omelete de tudo, roupa velha com sobra de carnes de feijão, rocambole e bolinho com sobra de arroz, escaldado de cabeça de peixe com maxixe e jiló e quiabo e pirão, fritadas com sobra de macarrão, mingau com sobra de banana e chás milagrosos com talos e cascas. Porque se um dia a guerra bater à porta (que Deus nos livre e guarde) não será o dinheiro, mas a criatividade e espírito sustentável das putas pobres que há de nos salvar.

No “Como Cozinhar um Lobo” de MFK Fisher, Nina Horta (que traduziu a obra para o nosso português, e ninguém mais o poderia) sublinha na orelha do livro um comentário da avó da autora, que ao ouvir duas mulheres mais jovens falando sobre suas estratégias de economizar e reaproveitar comida na guerra, comenta: “Ouvindo vocês percebo que desde que me casei, há mais de cinquenta anos, sempre vivi com orçamento de guerra sem me dar conta, aliás não sabia que usar o bom senso na cozinha era moda apenas nas emergências”. Vejo quanta nobreza desta distinta senhora da década de 1940.

Cientes de que a puta rica de hoje pode ser a puta pobre de amanhã, eu você já começava a separar as sobras sem perder a ternura jamais. Veja bem, não tô agourando, mas né?  

ARROZ DE PUTA POBRE

Ingredientes Sobras de pontinhas de carnes que você congelou pensando no dia de amanhã | Sobras de legumes cozidos ou crus | Ervas e hortaliças entristecidas | Pontas de temperos |  Sobras de enlatados | Sobras de grãos | Pontas de queijos e embutidos |  Arroz cru de preferência | Alho | Azeite de oliva

Modo de fazer Não que algumas proteínas animais distintas não conversem bem na panela, taí a paella valenciana e a família feliz que não me deixam mentir, mas é importante fazer uma pré-seleção do que vai no seu arroz, pois talvez nem tudo possa ser misturado. A puta é pobre, mas tem critério. 

Arroz e leguminosas cruas cozinha-se ao dente apenas com sal, escorre-se e reserva-se; sobras de enlatados lava-se bastante em água corrente e reserva-se; pontas de queijos e embutidos, pica-se e reserva-se; vegetais crus, corta-se em cubos e cozinha-se rapidamente no vapor; o que estiver cozido basta cortar, de preferência sempre no mesmo padrão. A puta é pobre, mas primorosa.

Pronto. Feita a pré-produção é hora de aglomerar. Faça uma base de cebola e alho picadinhos e tostados no azeite de oliva (se tiver ponta de bacon ou linguiça nos seus potinhos de Claybom derreta os cubinhos e use esta gordura); junte as pontas de temperos (pimentões, tomates e hortaliças), some pimenta dedo-de-moça e cheiro doce. Nada de sal, pois você está usando sobras já temperadas. Vá juntando tudo delicadamente na panela uma coisa de cada vez.

Se a mistura pedir gordura, dê. Se pedir hidratação, abaixe o fogo e some algum caldo ou mesmo água fervente pelas bordas da panela. Ouça atenta o que pede a sua puta pobre.

Finalize com pozinhos mágicos de curry, açafrão, páprica defumada, raspinhas de limão e aqueles condimentos que você comprou por impulso e estão caducando no armário. Não todos! curry orna lindo com as putas pobres vegetarianas; açafrão casa de véu e grinalda com aves; shoyu, cebolinha e gengibre com pontas de peixe, e por aí vai. Cubinhos de queijo e cheiro verde só no fim de tudo, incorporados à mistura quente, mas já com fogo desligado.

Porque chique mesmo é ter bom senso. A puta é pobre, mas tem de sobra.