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Paulo Sales
Publicado em 14 de fevereiro de 2022 às 05:02
- Atualizado há 2 anos
Nas redes sociais e em redes de tevê, néscios irreverentes e engraçadinhos, recém-saídos do anonimato, fazem apologia ao nazismo. No Congresso, deputados que se vendem por somas que superam os milhões aprovam um projeto de lei que nos empanturrará de veneno. No Rio, um sargento ordinário desconfia do vizinho de pele preta e desfere três tiros contra ele. Será julgado por homicídio culposo, quando não há intenção de matar.>
Esses três episódios – que revelam muito do que há de mais abjeto no Brasil – poderiam até acontecer em outros períodos da nossa trajetória habitualmente errática e sombria. Mas é sintomático que ocorram justo nesses quatro anos de devastação e decadência em que estamos metidos. Eles são a gangrena, a metástase, a disseminação em escala epidêmica de um processo de degradação institucionalizada, promovido por aquele que é, de longe, o pior presidente da história do país.>
Como chegamos até aqui? O marco inicial, a pedra fundamental da nossa desdita teve início, a meu ver, naquela tarde de 2016 em que um então deputado federal utilizou o plenário da Câmara Federal para louvar um torturador em praça pública – e não saiu de lá direto para a cadeia. Naquele momento, o tecido da democracia brasileira se esgarçou e perdeu sua integridade. A partir dali, tudo se tornou permitido.>
Hoje, como consequência, sobrevivemos em um país de boçais preconceituosos e ignorantes cheios de convicções. Uma visão de mundo tosca, primária, que deixa evidente a indigência do debate público. Mais do que um governo desastroso, o que assistimos é a própria ruína de um processo civilizatório que levou anos para se formar – e que no Brasil sequer foi concluído.>
As florestas viram pasto, os rios são contaminados por mercúrio, os índios são atacados por quadrilhas de garimpo, as armas de fogo proliferam, as milícias se fortalecem, os discursos coléricos recrudescem, a pandemia não cessa, o desemprego aumenta, a miséria se exacerba, a fome corrói. Padecemos, como nação, de uma septicemia, uma infecção generalizada. A cada dia pioramos e só nos resta contar: menos um, menos um, menos um.>
Sempre fomos um país brutalizado, classista e profundamente racista. Sempre fomos um país de pessoas sem acesso à educação formal, que se apegam à religião ou a conceitos civilizatórios rudimentares para seguir em frente. Aviltadas, humilhadas, ofendidas. Talvez por isso, não tenhamos propensão a virar a mesa, queimar carros e espatifar vidraças quando a injustiça atinge níveis intoleráveis. Porque é evidente que já chegamos a esse estágio.>
Como consequência, estamos criando uma nova espécie de apartheid, gestando um ovo de serpente que pode ter consequências imprevisíveis. Cada vez mais nos odiamos, algo que pode ser mensurado facilmente nas brigas de trânsito e nas redes sociais, nos espancamentos de negros e nas ofensas a gays, na proliferação de quadrilhas da fé que perseguem religiões africanas. O arremedo de evolução que chegamos a experimentar como sociedade parece ter se esfarelado.>
É isso que queremos? Um ódio desmedido e sem sentido? No Brasil, ao contrário do que disse Sartre, o inferno somos nós. Presenciamos um momento de franca deterioração moral, de retorno ao que temos de mais bárbaro e primitivo, como uma espiral que sai um pouco fora da curva e derrapa inapelavelmente rumo ao precipício.>