Como encher um balão de ar com a boca

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  • Kátia Borges

Publicado em 10 de julho de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Há algo se movendo lentamente no cotidiano. É devagar que chega, e é bom que seja deste modo. Como se enche um balão de ar com cuidado para que não estoure. Antes se deve esticar o látex colorido da bola vazia em todas as direções, até que se dilate um pouco. Com firmeza, porém leve, para que o tecido não se rompa. 

Então o “beije”, diz um tutorial irreverente sobre como encher um balão de ar com a boca. Exercício de fôlego. Deixemos, nessa metáfora, os compressores mecânicos e elétricos de lado. Como quem põe o endereço fixo em suspenso e sai para andar por aí fazendo de casa o próprio corpo, de carro, moto, a pé, a camelo. 

Penso nisso, enquanto observo o estreito mar cotidiano se expandir em oceanos. E, do azul, pressinto o cheio denso duma maresia remota. Na Gare de Astapovo, o velho Leon Tolstói de que fala Mário Quintana. A fuga de que fala aquela antiga canção que gosto. O coração batendo desigual, enquanto o trem avança. 

Enquanto o trem avança, o ar dos pulmões transfere ao balão sua força. O movimento da respiração humana na bola movimenta a pele colorida do Universo. Como quem põe a casa nas costas. Feito aquelas moças corajosas que pegaram a estrada: Robyn Davidson, Rosie Swale-Pope, Angela Maxwell. 

Dei de me distrair da tragédia contemporânea com essas coisas, e de seguir grupos de nômades e devorar suas histórias. A escolha do veículo perfeito, a construção metódica das estruturas em madeira que abrigarão eletrodomésticos. Madeira, fibra de vidro. O estudo das rotas. Pneus de tala larga, botas reforçadas. 

Dei de me distrair da tragédia do nosso século com essas coisas. Barracas automotivas de teto, mochilas de 70 litros. Postos de gasolina, albergues, pontos de apoio, estacionamentos. Ao longo do caminho imóvel, enquanto me distraio, uma Santiago imaginária inquieta as minhas manhãs intranquilas. 

E lembro do adolescente baiano que, no começo do outro século, foi de bicicleta de Salvador até Nova Iorque, cruzando fronteiras de 11 países. Dizem que levava consigo dez mil réis, uma arma de fogo, a foto de sua namorada, que se chamava Euthymia, e um diário de bordo com capa de couro e folhas em branco.