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João Gabriel Galdea
Publicado em 12 de dezembro de 2021 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Entre as expressões que constam na letra ‘si’ do Dicionário de Baianês, uma das mais conhecidas fora das fronteiras estaduais é ‘Se oriente!’. Traduzida ao forasteiro como ‘Tome jeito!’, ela abre a clássica canção ‘Oriente’, de Gilberto Gil, que sem querer previu o destino de Nivaldo Lariú, muitos anos antes dele escrever o livro que, nesta semana, completou 30 anos de lançado e ostenta a marca de 300 mil exemplares vendidos. >
No ano de lançamento do Expresso 2222, álbum onde está ‘Oriente’, o filho de Itaperuna, no Rio, tinha 20 e poucos anos, era rapaz recém-formado em Engenharia de Telecomunicações, e considerou a possibilidade de ir pro Japão. Aliás, não apenas considerou, como foi, em 1972, pela simples razão de que tudo depende, diz o mestre, de determinação. >
Já apaixonado e curioso pela Bahia após ler Capitães da Areia (de Jorge Amado) na adolescência, topou um convite da antiga Telebahia para fazer um treinamento lá onde o sol se esconde, e hoje compreende que a simples convivência com uma renca de baianos em Tóquio, por quase seis meses, foi o big-bang da obra que o tornou famoso - isso depois, obviamente, de um curso de pós-graduação na vida nesta Salvador que o adotou.>
“No ano que eu tava me formando (em Niterói), a Telebahia, que então se chamava Tebasa, botou anúncio no Jornal do Brasil, no Rio, recrutando engenheiros recém-formados. Eu que vi o anúncio, por ironia do destino, e chamei minha patota da faculdade para mandar os currículos. Isso foi outubro de 1971 [o dicionário nasceria 20 anos depois]. Éramos cinco, e a Telebahia demorou de responder. Aí entrei na atual Telerj, e eu tinha um mês de trabalho, quando chegou um telegrama da Telebahia, chamando para uma entrevista com o chefe do RH, que tava no Rio”, recorda Lariú. >
A viagem >
Era o período da ditadura militar, e um dos professores da graduação em Engenharia, por acaso, era ex-milico e, mais que isso, amigo do milico que era o tal chefe dos Recursos Humanos da Telebahia.>
“Coincidência! E quando nós chegamos lá para conversar com o cara do RH, ele disse: ‘olhe, não tem entrevista nenhuma. Eu já tenho as fichas de vocês. É só vocês irem para Salvador assinar o contrato amanhã, e daqui a 15 dias irem para o Japão, fazer um treinamento”, relembra Lariú, que não era milico, muito menos menino ou oreba, e topou o rolé do outro lado do planeta. >
Bolinha vai, bolinha vem, certo dia Lariú e os outros capitães da antena - a comitiva era formada por cinco engenheiros do Rio e seis da Bahia - passavam na frente de um campinho, na capital japonesa, quando uma expressão chamou a atenção do nosso Pedro sem Bala.>
“Morávamos todos num flat, e as aulas eram numa fábrica. E no caminho tinha uma quadra que a gente passava e tava sempre vazia. E aí um dos baianos um dia falou: ‘rapaz, umbora pegar um baba uma hora dessas?’ Perguntei o que era baba, ele explicou. E aí chega no baba, um falou: ‘eu vou parar que eu tô boiado’, e outro comentou que ‘o baba demorou mais de duas horas de relógio’, e eu fui achando aquelas expressões curiosas”, conta Lariú, ao relatar o início de seu mergulho mais profundo na cultura da Bahia, já desde o princípio, pelo baianês.>
Mas teve escala, claro, no japonês. “Nós todos estávamos na flor da idade, e a gente paquerava. E lá eu conheci uma japonesa, e pirei. Terminei o curso e voltei apaixonado. Durante três meses, a gente se falava por carta e por telefone. Caro pra caralho a ligação para o Japão, na época. Até que um dia eu chamei ela pra vir pra Bahia, e a maluca veio”, brinca o engenheiro-escritor, ao falar de Fusako Ishikawa Lariú, com quem foi casado durante 16 anos - ela ainda vive na Bahia, trabalhando com turismo -, e teve seus únicos três filhos. >
O trio >
Esse trio elétrico, nascido e temperado na Bahia, é formado pela servidora federal Cecília, hoje com 46 anos, a empresária Alice, 44, e o médico Daniel, 43. Depois dos baianos peladeiros de Tóquio, são eles que formam a divisão de base do Dicionário, que foi registrado na Biblioteca Nacional como Pequeno (e incompleto) >
“Na infância, todo final de semana a gente ligava para os avós e primos deles, no Rio, e uma vez uma das crianças me falou: ‘painho, por que eles falam errado?’ E aí eu fui explicar que há palavras que eles usam lá que nós não usamos aqui”, comenta Lariú, antes de citar que foi o caminho de volta - as palavras que usamos aqui, e não usam lá - que acabou sendo o trajeto de ida ao Dicionário.>
“A partir daí, eu comecei a anotar as palavras, e isso virou paranoia lá pelo final dos anos 80. Eu já andava na rua ligado! Ouvia uma expressão e anotava num talão de cheques que tenho até hoje”, diz, mencionando uma das relíquias que dona Janete, sua “mulher atual e definitiva”, como afirma, guarda. >
Trata-se de uma espécie de memorial da obra, com fotos, anotações, as primeiras ‘bonecas’ (matrizes impressas do projeto de livro) etc. >
Feita a longa coleta de vocábulos e expressões - vindas das paletadas pelas ruas de Salvador, dos ônibus, das filas, da boca do povo -, o livro ainda demorou um bom tempo para ir para o prelo, mas essa parte da história já é mais conhecida. >
Constam apoios e conselhos empolgados que vão do jornalista Fernando Vita ao historiador Cid Teixeira, dos publicitários Carlos Sarno, Fernando Passos e Carlos Verçosa ao saudoso cartunista Lage (dono das ilustrações da obra).>
O Dicionário de Baianês finalmente saiu, quase 20 anos depois dos babas no Japão, em dezembro de 1991, e virou além de uma representação do modo de viver e levar a vida de um povo, uma forma de rir e até de souvenir: a Livraria do Aeroporto é a que mais vendeu, normalmente para turistas, nessas três décadas de sucesso. Deve voltar a vender ainda mais, agora que uma edição revista e ampliada foi lançada na última quarta-feira (8), no Sesi Rio Vermelho>
Não pude prestigiar, posto que de plantão, mas me propus a desenrolar essa homenagem como forma de retribuir um apoio que Lariú me deu lá em 2004, e que ele já nem lembrava. Eu, menino todo, recém-saído da escola, recém-nascido como contista, escrevia uns livretos mal-amanhados, xerocados, denominado 'Raiai! - Histórias do Cotidiano de Salvador'. Lariú foi um dos primeiros a comprar, numa banca, e um dos únicos a apoiar este colunista que tinha pouca ou nenhuma autoestima para acreditar que podia alcançar grandes públicos.>
“Gabriel, pra você, cronista da Bahia e do baianês, um abraço de Nivaldo Lariú, nov/2004” foi um impulso para o 'Raiai!' se estender até o quarto número, e me ajudou a abrir muitas portas que vieram dar neste salão nobre do Baianidades. >
O Raiai! custava R$ 1 e tinha uns seis contos e crônicas cada número; e o Dicionário de Baianês, “sorridente, rapaz”, custa R$ 20, tem cerca de 1.600 verbetes, e portanto sai muito mais em conta.>