Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Paulo Sales
Publicado em 11 de julho de 2022 às 06:15
Tenho me sentido mentalmente exaurido. Como se a seiva que produz a criação em mim, que já não é lá muito fértil, tivesse escorrido além da conta, deixando apenas um oco despido de ideias e indagações. Logo as indagações, esses sucessivos pontos de interrogação que costumam se espalhar como magma nos textos que escrevo. Leio as peças de Tchékhov, ouço o piano de Oscar Peterson e vejo os jogos do Flamengo. São meu alento, minha abstração.>
Como muitos de nós, preciso de férias. Mas o certo seria dizer férias da realidade cotidiana. Da nossa brutalidade, do excesso de informação, do clima pré-eleitoral, da tela do computador incinerando lentamente as minhas retinas. Queria poder passear mais pelo parque com Pudim, meu cachorrinho, vendo as aves enormes que, creio, sejam jaçanãs. Parecem miniaturas de dinossauros. Há outras igualmente belas, como a garça que passa a maior parte do tempo estática, olhando fixamente a água em busca de alimento.>
Hoje vi uma tartaruguinha na lagoa. Ela pôs a cabeça para fora da água, como se quisesse me saudar, e imergiu novamente. Gosto de observar a vida que transcorre para além das preocupações financeiras e dos compromissos de trabalho. A vida em sua essência, plácida, modesta e teimosa em sua busca por permanência. As plantas rasteiras que invadem a pista de caminhada, os animais rasteiros, os outros cães, muitos dos quais já sei o nome. Vidas que pedem passagem sem gritos, sem bravatas, sem palavras de ordem.>
Os pensamentos se expandem. Recordo as férias da infância, infinitas em sua extensão. Dias inteiros na praia, nas casas de veraneio, no Sesc de Piatã. Jogando bola na areia, olhando espantado a noite, tentando entender a mim mesmo, de onde vinham aqueles sentimentos desnorteados como uma ave cega, que pareciam alheios a mim, mas ao mesmo tempo me pertenciam, como se eu os houvesse herdado. Quem fui, quem sou, quem serei.>
Somos uma somatória de genes, frutos do delírio e do caos, reféns da história, envoltos em afeto e solidão. Vem agora à mente uma frase de Sartre, do seu livro de memórias As Palavras: “Quanto a mim, eu era o começo, o meio e o fim juntados num menino muito novo e já velho, já morto (...) Reunido, apertado, tocando com uma mão meu túmulo e com a outra meu berço, sentia-me breve e esplêndido, um raio terrível eclipsado pelas trevas”.>
Outro dia, a poeta Kátia Borges relembrou, em uma bonita crônica aqui no Correio, da angústia que cercava sua participação em quadrilhas juninas. A timidez de encarar colegas, coreografias e o público de pais e parentes que iam ver essas exibições. Eu sentia a mesma coisa. Garoto gordinho e tímido como o diabo, queria me ocultar, tornar-me invisível, não precisar me relacionar com tanta gente. As garotas que eu amava secretamente me eram inacessíveis, inclusive na hora da escolha dos pares.>
Essa timidez desastrosa, que até hoje me acompanha e que já me fez perder oportunidades profissionais e amorosas. Um jeito meio esquisito de animal sorrateiro, fugidio, que prefere a penumbra aos holofotes. Como meu avô materno, que não conheci, tenho predileção pelas sombras, pelo admirar da lua cheia na escuridão. Mas a introspecção é um legado de meu pai, que deve tê-la herdado de outros tantos seres ensimesmados que viviam na terrinha lusitana ou a abandonaram para desbravar o novo mundo.>
Não sei por que discorro sobre essas coisas aqui. Provavelmente por falta de assunto – afinal, essas crônicas que lanço a cada semana nada mais são que pura conversa fiada envolta em um invólucro de sabedoria postiça. Mas também pelo fato de que pensar no mundo de outrora me traz certo conforto. Como se regressasse a um lugar aconchegante, onde, se não cheguei a ser feliz, ao menos>
me sentia acolhido, seguro dentro de uma redoma de calor humano. Mas não totalmente imune ao som e à fúria do mundo.>
Volto às palavras de Sartre: “Gastos, obliterados, humilhados, encantoados, passados em silêncio, todos os traços da criança remanesceram no quinquagenário”. Eu subsisto, arremedo de quem fui, no homem que vislumbra parte do seu rosto na tela do computador. Exausto, enfastiado, olhando a noite e me dissipando no silêncio.>
*>
Nas próximas semanas entro de férias e deixo os meus poucos leitores em paz. A coluna estará de volta em 1º de agosto. Até lá!>