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Gabriel Moura
Publicado em 17 de agosto de 2019 às 06:30
- Atualizado há 2 anos
Até 1998, quem ia de avião para Hong Kong tinha que passar pelo lendário Aeroporto de Kai Tak, que já chegou a ser considerado o mais perigoso do mundo por conta de algumas peculiaridades. Dentre elas, o chamado vento de través que atuava sob o terminal, sempre gerando pousos e decolagens com altas doses de adrenalina. Mas, principalmente, pelo fato de que para aterrissar em sua pista, os aviões passavam próximos aos prédios do território autônomo chinês.>
Foi justamente por Kai Tak que Rita Lan Kwai Hing embarcou para o Brasil, aos 10 anos. Alguns anos após chegar em Minas Gerais, ela conheceu Amintas Goulart e os dois se casaram. Paula Lan Goulart, 28, é fruto deste amor intercontinental e hoje é a responsável pelas obras de reposicionamento das cabeceiras da pista principal de outro aeroporto, o de Salvador.>
Antes de chegar em solo baiano, no entanto, a trajetória da engenheira mineira não foi fácil. Tal qual o exemplo da mãe, para se encontrar com o seu destino, Paula teve de cruzar uma fronteira tão grande e profunda quanto o oceano que separava Rita de Amintas: o machismo.“Na minha sala da faculdade, 95% dos estudantes eram homens. O campo de trabalho também era bastante machista. Quando comecei a estagiar, sempre ouvia piadinhas e cantadas. Diziam que eu só estava ali porque era bonitinha ou por cotas para mulheres. Era horrível, pois me reconheciam apenas por um estereótipo preconceituoso e não pelo meu trabalho”, lembra.Apesar das dificuldades, Paula jamais abaixou a cabeça. Se quando era estagiária precisou conversar com seus superiores para evitar as “brincadeirinhas”, hoje ela coordena a sua própria equipe. Comandando as obras de requalificação da pista do Aeroporto Internacional de Salvador, ela está à frente de uma equipe de cerca de 300 pessoas, sendo 95% homens - a mesma proporção na sua sala quando estudava. >
“Não podemos nos intimidar e, sim, demarcar o nosso lugar. Aqui, por exemplo, nunca duvidaram da minha capacidade ou fizeram piadinhas. Eu também amadureci bastante e hoje sou bem braba”, brinca. Paula mostra asfalto com seu nome gravado (Foto: Thiago Del Rey/Divulgação) Paixão por asfalto >
Para muitos, engenharia civil é sinônimo de grandes obras e prédios altos, mas este gigantismo nunca atraiu Paula. Tal qual os aviões em Kai Tak, ela driblou os arranha-céus e se encontrou nas pistas e, como boa mineira, as transformou em seu ouro preto.“Não consigo entender o amor das pessoas por grandes estruturas. Eu prefiro o asfalto. Na minha mesa tenho vários exemplares. Inclusive um muito especial, que ganhei de presente com meu nome entalhado nele”.Uma pesquisa realizada pela Universidade de Glasgow, na Escócia, diz que o escocês possui quase 400 palavras para descrever os mais diferentes tipos de neve. A mineira possui uma relação similar com o asfalto. “Consigo ver perfeitamente a diferença entre os tipos. Se tem um tipo de material diferente ou uma pedra fora do lugar”, conta.>
Apesar da paixão incomum, Paula não está “na pista”. Casada com o também engenheiro Henrique, ela tem o desafio de unir o casório com uma rotina de trabalho desgastante. Para não atrapalhar o fluxo de aviões, as obras de requalificação da pista precisam ser realizadas de madrugada.>
“Mas quando se ama, não há dificuldade que não possa ser superada. Na verdade, quem sofre mais é o meu cachorro. O bichinho não sabe que horas a mamãe dele estará em casa, quando o levarei para passear”, brinca. Engenheira ao lado de colegas da equipe técnica das obras do aeroporto (Foto: Thiago Del Rey/Divulgação) “É difícil trabalhar de madrugada, mas ao mesmo tempo muito gratificante. Neste horário é bom que não tem ninguém ligando, atrapalhando, e posso me concentrar no trabalho. Ao mesmo tempo, quando uma máquina ou peça precisa de algum material, não tem jeito de conseguir. Entretanto, a melhor coisa é poder ver o sol nascer da pista. É muito lindo”, completa.>
Outra situação com a qual a mineira precisou se acostumar, essa sem a menor dificuldade, foi a mudança para Salvador. Morando aqui desde 2018, ela já se considera uma ‘baianeira’. “Sou hoje a mineira mais baiana que alguém pode conhecer. Amo o clima daqui, as pessoas, as comidas. Ganhei até uns quilinhos”, diverte-se.>
*Com orientação da Chefe de Reportagem Perla Ribeiro>