Conheça José Carlos, o padre que há 30 anos luta pelos direitos humanos

Pároco do Alto do Peru, religioso diz que medo não lhe impede de trabalhar pelos excluídos

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  • Fernanda Santana

Publicado em 12 de março de 2022 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

À frente da Paróquia Nossa Senhora de Guadalupe, no Alto do Peru, o padre José Carlos Santos Silva, 70 anos, vê pobreza e violência na rotina mais próxima. É um líder religioso que se posiciona e cobra respostas e, sendo ele como é, nem sempre agrada. “Acho um incentivo. Toda unanimidade é burra”, acredita.

No início da noite da última quarta-feira (9), o padre celebrou a missa das 18h na paróquia com a foto dos três mortos na Gamboa na madrugada de 1º de março. Para ele, é “ironia do destino na cidade do Salvador, construída à margem da Baía de Todos-os-Santos, que tem como mãe, carinhosa, acolhedora, Nossa Senhora de Conceição da Praia [...] mães não terem a oportunidade de abraçar seus filhos assassinados”.   Missa da última quarta-feira trouxe fotos dos mortos na Gamboa (Foto: Reprodução Youtube) O padre, durante as missas, fala de política - sem citar partidos -, violência, justiça e direitos humanos. A Arquidiocese de Salvador não proíbe os párocos de se manifestarem, mas recomenda que os posicionamentos não sejam partidários.“Se alguém é contrário a mim, tudo bem. Vejo até pessoas que são pobres, vulneráveis, acharem que não devem abordar certos assuntos”, diz José.O religioso tem uma rotina de missas diárias - só aos domingos, celebra cinco - e reuniões como presidente da Associação Social Arquidiocesana (ASA) e coordenador do Grito dos Excluídos, manifestações que ocorrem ao redor do Brasil no 7 de setembro, Dia da Independência do Brasil. Na última segunda-feira (7), ele participou de um protesto que cobrava justiça pela morte de Alexandre, Patrick e Cleverson, os mortos na Gamboa. 

As circunstâncias dos óbitos ainda não foram esclarecidas - a Polícia Militar (PM) afirma que foi troca de tiros, a comunidade local nega, diz que foram assassinatos a queima-roupa numa casa abandonada. O caso é investigado pela Corregedoria da PM.Padre tenta reabrir escola Não é a primeira vez que o religioso se mobiliza contra mortes não explicadas - e ao que tudo indica não será a última. Semana passada, um jovem que morava no Alto do Peru morreu. Foi assassinado pela polícia, afirmam os vizinhos. A notícia da morte não repercutiu, rondou na comunidade como se fosse mais um número. “Veja se fosse em um bairro como a Barra. Seria assim? Segundo os comentários, ele tinha envolvimento com o tráfico. Segundo os comentários, o policial riu. Essa não deve ser a expressão. Mas o sistema que vivem nos desumaniza”, acredita. A rotina do padre José, como presidente do braço social da Arquidiocese, é cheia de perguntas a serem resolvidas. No momento, trabalha em conjunto para conseguir apoio a uma casa que abriga temporariamente pessoas do interior que fazem tratamentos de saúde em Salvador. Até agora, conseguiram suporte de uma diocese norte-americana, liderada por um brasileiro. Ainda não é o suficiente.  Padre José durante manifestação na Gamboa (Foto: Marina Silva/CORREIO) Quando não está em reuniões, costuma seguir a rotina de acordar às 6h, rezar e fazer um desjejum. Ao fim, senta-se na biblioteca para ler e descansar - principalmente aos sábados.

As leituras são sobrepostas umas às outras: Comentário ao Evangelho, de Raymond Brown, e O Credo de São Tomás, de Armindo Trevisan, são lidas ao mesmo tempo em que o padre folheia o primeiro volume da biografia do ex-presidente Lula, de Fernando Morais. 

A ideia é que o acervo da biblioteca seja aberto a toda a comunidade ainda neste ano. Para isso, é preciso apoio e patrocínio. A biblioteca é um dos cômodos de um anexo da igreja, onde funcionava a escola comunitária, fechada desde 2012. O padre também tem planos de conseguir reabrí-la.

Violências e mudanças  Desde o início da vida religiosa, na década de 80, o padre visita presídios. Como presidente da Pastoral Carcerária na Bahia, durante dez anos, ele perdeu as contas de quantas vezes passou dia e noite entre presos, rezando com e por eles.

Aprendeu lições nessas experiências, entre elas o quão profundo pode ser o sofrimento humano. Outros aprendizados ele adquire nas ruas, em diálogo com vítimas de violações de direitos.

Quando se sente ameaçado por se posicionar, como na tarde em que um policial disse que passaria a cavalaria por cima dele e de outros manifestantes, padre José responde.“Não vou dizer que eu não tenho medo [das posições que assumo], mas enfrento, não fico calado e tomo uma posição”, afirma. Natural de Ubaíra, no Vale do Jequiriçá, José Carlos chegou em Salvador na década de 90 saído de Santo Amaro, onde foi padre por oito anos. Em 1993, foi transferido para a paróquia onde permanece até hoje, no Alto do Peru.

Era um bairro menor, mas a violência começa a se espraiar por entre as ruas e marcar famílias para sempre. Padre José nunca achou normal se calar, se vive entre elas.

Nos primeiros anos de paróquia, era possível realizar missas às 19h30, porque, segundo ele, “havia uma certa tranquilidade de ir”. Hoje, mesmo em vigílias religiosas, os fiéis não passam mais tanto tempo na igreja - têm medo de voltar para casa depois das 20h. “A igreja sempre vai ser aquela para despertar o amor a Deus, mas sem o amor ao próximo, qualquer próximo, não se pode amar a Deus”, acredita. Retorno à batina Quando fala sobre a infração diária de direitos de minorias, o padre emenda os pensamentos e demora a parar de falar. É muito o que tem que ser dito. “Você deve estar pensando: ‘o padre se empolgou’”, ele ri. “Mas é que são realidades que me provocam muito”. O momento exato em que a pauta social se integrou à vida religiosa, ele não lembra exatamente. Por experiências familiares, ele sabe que não foi. 

O crescimento aconteceu num lar que não era de luxo, nem de restrição. O pároco  é o segundo de 15 filhos de um casal de Ubaíra, e desfrutava uma vida de classe média na cidade, cuja economia era baseada nas grandes plantações de café.

A pobreza existia, como em qualquer lugar do mundo, nos grandes e pequenos, mas nunca rondou a casa e a mesa da família Santos Silva. Foi do pai, devoto de Nossa Senhora, que José herdou o gosto pela religião. Às quartas e sábados, ele e a família ajoelhavam-se para rezar à mãe de Jesus.

Mas o gosto pelo trabalho social parece ter surgido em Santo Amaro, para onde ele se mudou com os pais e os irmãos na década de 70 e iniciou a vida religiosa - primeiro, como coroinha da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, a mesma frequentada por Maria Bethânia, e como padre, aos 29 anos.  Padre José no dia em que foi ordenado (Foto: Acervo Pessoal) Depois de assumir a paróquia, ficou responsável pelas pastorais sociais: acompanhava reuniões e visitava as áreas mais pobres e violadas da cidade, que sobrevivia economicamente das usinas e do açúcar.  

Aos 16 anos, José já tinha certeza de que queria ser padre. A mãe , no entanto, aconselhou o filho que esperasse, era muito menino ainda. Mas ele insistiu e, na maioridade, desembarcou em Salvador para iniciar o seminário. A primeira tentativa de ser ordenado padre foi frustrada - durou apenas dois anos. Ele estava certo de que gostava da vida religiosa, mas eram privações demais para uma cabeça jovem, que pedia expansão. Decidiu sair porque queria viver um pouco do mundo. Foi apenas um hiato.“Sai e consegui um emprego na Coelba (Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia), tive até namorada, mas em junho de 1973 acabei voltando”, relembra. Não que as restrições tivessem acabado: José é que tinha aprendido a lidar com elas, porque o propósito, para ele, era maior. No dia em que foi ordenado padre, em 2 de julho de 1980, pelo então Papa (hoje santo católico) João Paulo II, ele lembra que o fizeram uma pergunta: “Você tem condições de ser padre?”. “Respondi que ninguém tem, mas que a glória de Deus supera tudo”.