Conheça o universo dos médicos que chamam a vacina contra a covid de ‘coisa de ideologia’

Eles receitam remédios sem base comprovada e deixam de lado o que diz a ciência sobre o vírus

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  • Fernanda Santana

Publicado em 16 de janeiro de 2021 às 08:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Sora Maia

Dois médicos se encontram no corredor e, às tantas, um deles pergunta: “Tem medo de coronavírus? É besteira”. Pela entrada do hospital, que mais parece um universo paralelo para eles, a julgar pelo teor da conversa, os pacientes não param de chegar. “Quem morrer é porque ia morrer”, continua o doutor. O papo acaba, e a dupla volta ao trabalho. Mas as ideias por trás daquelas falas ficam pairando no ar - e não só ali.

Nos hospitais e clínicas, uns apostam na ciência. “Outros no que a orelha ouve”, definiu a médica que presenciou a conversa acima e a relatou anonimamente. Ela será chamada de Lia nesta reportagem. As paredes das unidades de saúde não barraram a desinformação, aquela informação alterada para induzir ao erro, e o negacionismo soprados do lado de fora.

O  local onde ocorreu o papo entre os dois médicos, em Salvador, ficará ocultado a pedido de Lia. Onde ela trabalha, a administração emitiu três comunicados nos últimos dois meses para exigir uso de máscara pelos médicos o tempo todo, porque nem sempre é o que se vê. 

Os médicos podem emitir opinião ou dialogar com o paciente. “Mas existe a bioética. Ponderação é diferente de sensacionalismo. Não cabe ao médico não recomendar uma vacinação segura. E prescrever medicação sem comprovação em massa, mentir, são coisas intoleráveis”, avaliou Júlio Braga, vice-presidente do Conselho Regional de Medicina da Bahia (Cremeb). 

Sete médicos foram denunciados, na pandemia, acusados de prescrever em massa tratamentos, sem considerar o paciente. Os processos correm em sigilo. O Conselho Federal de Medicina (CFM) defende a autonomia dos médicos, mas os proíbe de prescreverem massivamente medicamentos e condena  mentiras proferidas no contexto clínico. As duas atitudes podem ser denunciadas.

A Associação Baiana de Medicina reconhece a existência do negacionismo entre profissionais da área e fala em “minoria a ser combatida”. Pelo menos 3.391 médicos contraíram coronavírus, segundo a Secretaria de Saúde da Bahia. Não há balanço do número de mortes. Paradoxalmente, mas nas redes sociais e trocas de mensagens em grupos de WhatsApp é comum ver a negação da realidade pandêmica por integrantes da classe. 

‘Vacinação é ideologia’  Em Feira de Santana, maior cidade do interior baiano, uma paciente conversava com a ginecologista, numa consulta pela qual cobra R$ 250, quando a médica decidiu opinar sobre algo alheio à ocasião: “Tem gente querendo nos obrigar a tomar uma vacina desconhecida, que nem sabemos de onde veio”.

Na mesma consulta, a médica ainda sugeriu o fechamento do Supremo Tribunal Federal, que, em dezembro do ano passado, decidiu pela obrigatoriedade da vacinação contra o coronavírus. Do outro lado da mesa, a paciente, que pediu anonimato, arregalou os olhos.

Ao ouvir a especialista, a paciente refletiu por que ainda há quem pense que médicos são donos do conhecimento sobre saúde. A vacina produzida pelo Instituto Butantan com a biofarmacêutica chinesa Sinovac, alvo da crítica da ginecologista,  atingiu eficácia de  100% para prevenir casos graves de covid-19, de acordo com avaliações preliminares.  

A médica foi procurada pela reportagem, mas não atendeu aos pedidos de entrevista. Poucos dias depois, outra paciente precisou ir à dermatologista. Dessa vez, em Salvador. “Ela me disse que essa vacinação estava mais para ideologia de esquerda”, relatou, também sob  anonimato. 

A médica em questão, Anete Olivieri, disse “não se lembrar” da fala. Mas admitiu a crítica, segundo ela, apenas sobre a correria para produzir uma vacina. “Ninguém pode lhe obrigar a tratar”, afirmou. 

Indagada sobre o impacto negativo para a coletividade decorrente da recusar em ser imunizada, Anete descartou: “Não, porque você tomaria, estaria protegido, e o outro, se não quiser, não fica”. No Brasil, há uma cartela de vacinação obrigatória prevista por lei desde 1975. 

Quem não a segue  sofre sanções. Entre elas,  impedimento de se matricular em instituições de ensino. É que, em vacinação, a proteção de um é  diretamente associada à do outro, num efeito dominó.

Prejuízos  O negacionismo, seja qual for, consiste em negar uma realidade. Para a Psicanálise, a negação é compreensível. “É um mecanismo infantil de defesa”, explica o médico Claudio Cohen, doutor em Psicanálise pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Bioética na mesma instituição. 

Entre adultos, o negacionismo tem a ver com não querer lidar com  um momento crítico, como a pandemia, mas é um processo inconsciente. Até porque cada  um responde de uma forma a fragilidades.   

“Pode ser filosoficamente, politicamente, cientificamente, religiosamente e pela negação”, completa Cohen. A virada é quando negar algo se torna uma mentira, algo consciente. “E médico mentir para paciente pode ter um efeito destrutivo”, ressaltou.  

O efeito mencionado não deve ser generalizado, mas pode incluir o incentivo a comportamentos como a negação de medidas eficazes contra o coronavírus em detrimento de outras, sem embasamento. 

A médica Clarice Saba é otorrinolaringologista, e defende tratamentos sem consenso científico quanto ao uso. Por exemplo, o tratamento precoce contra o coronavírus, com medicamentos como a hidroxicloroquina. 

Mas ela não se vê como negacionista e nem mentirosa. “Não tenho como ser contra o tratamento precoce se meus pacientes têm resultado. As opiniões divergem na ciência”, disse. Clarice também é a favor da imunidade de rebanho - criticada pela Organização Mundial de Saúde - e contra o isolamento obrigatório.  

“O problema é que a discussão foi politizada”, afirmou Clarice, que, inclusive, tentou uma vaga de vereadora de Salvador nas últimas eleições. Ela comunga com as  ideias da colega Raíssa Soares, que ficou famosa ao gravar um vídeo para o presidente Jair Bolsonaro, pedindo hidroxicloroquina para o posto onde trabalhava, em Porto Seguro. Neste ano, Raíssa virou secretária de Saúde da cidade. 

O resultado das divergências de posicionamento tem criado um racha entre as equipes médicas - como reconhecem os profissionais ouvidos -, em que as redes sociais servem de vitrine .

“Hoje todo mundo aparece, diz algo distorcido ou que pode chegar de forma distorcida. Me parece que, ao invés de pensar a coisa como ela realmente é, alguns (médicos) se deixam levar pela polarização”, opinou o presidente da Associação Baiana de Medicina, César Amorim

Na Espanha, por exemplo, um coletivo autointitulado “Médicos pela Verdade” tem usado justamente as redes para disseminar mentiras.  O alinhamento político de sociedades médicas com o governo federal, no Brasil, é citado como explicação para a defesa de tratamentos sem eficácia.  

Na campanha  de 2018,  Bolsonaro prometeu tanto ao CFM quanto à Associação Médica Brasileira a criação da carreira de médico de Estado no lugar do programa Mais Médicos, que já havia dividido a classe, em 2008.

Medicina e evidências  A Medicina nem sempre foi, ou é, pautada por evidências científicas. Agora, a pandemia iluminou o debate. “Muitas coisas não são baseadas em evidência, mas são comuns. Na pandemia, (ocorrem) até pelo desejo do médico em fazer algo rápido, por um desejo de fazer”, explicou Luis Correia, cardiologista e professor de Medicina baseada em evidências da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.

A disciplina ensinada por ele tem o nome de uma abordagem que ganhou força na década de 80, com o avanço de ensaios clínicos para checar a eficácia e resultados de tratamentos. Mas, disse Correia, “Medicina baseada em evidência nada mais é que Medicina e as decisões médicas precisam ser embasadas”. 

Evidências científicas fracas, com pouca fundamentação e extrapolação de resultados, no entanto, são recorrentes. “A campanha em massa por autoexame da mama para detecção de câncer, por exemplo, nunca foi realmente fundamentada cientificamente”, emendou.

Na Medicina, costumes e experiências pessoais e profissionais podem ganhar conotação de regra. Além do mais, médicos fazem parte de uma sociedade que, explicou Correia, não foi ensinada a pensar cientificamente.  Para o bem e para o mal, portanto, os hospitais não passam à margem das ruas. E esse não é, necessariamente,  um fenômeno recente.

Em 1904, quando foi instituída a vacinação obrigatória contra a varíola no Rio de Janeiro, diversos grupos – inclusive de médicos – se opuseram, no que ficou conhecido como Revolta da Vacina. 

O diretor-geral de Saúde Pública da época, Oswaldo Cruz, foi criticado até por Ruy Barbosa. Com a redução das taxas de mortalidade, a história mudou. Em 1917, o mesmo Ruy, antes crítico, elogiou Cruz. Disse que o cientista não havia cedido aos “destemperos do obscurantismo”.

Até dois anos atrás, debates sobre o negacionismo não ganhavam tanto eco na Faculdade de Medicina da Ufba. “Agora é uma questão”, contou o diretor da instituição, Luís Fernando Adan. Algumas das apostas são  estimular o pensamento científico e evidenciar a responsabilidade social dos médicos. “Um médico precisa saber que o que ele diz tem eco”, defendeu.  

Vez ou outra, Adan se depara com colegas que, na visão dele, esquecem do próprio papel social e ético e proliferam mentiras e desinformações. É sempre uma surpresa. “Ouvi alguns colegas que minimizam o problema. Só pode ser uma cegueira”,  lamentou.

A ciência pode ser questionada. Sobre isso, todos que foram ouvidos para esta reportagem concordam. Nenhuma pergunta, no entanto, deveria levar a Medicina aos caminhos da negação.

ARGUMENTOS COMUNS de um possivel negacionista

Imunização de rebanho  É um conceito relacionado à imunização em massa – por contaminação ou vacinação. Agora, tem sido defendida que a imunização em rebanho seja feita por contaminação. Mas cientistas apontam dois erros nessa afirmação: o índice de mortos por covid-19 e a falta de evidência científica que comprove que, depois de contaminada, uma pessoa fica imune ao coronavírus. 

Tratamento subjetivo O movimento contrário à vacinação obrigatória alega falta de necessidade de imunização em massa por vacinacação. Pesquisadores afirmam que isso pode ser um risco, já que, como a covid-19 é altamente contagiosa e a vacinação não será feita em todas as parcelas da população de uma só vez, o vírus ainda permanecerá em circulação. 

Meu paciente tem efeito Um dos argumentos para usar tratamentos  sem eficácia comprovada é o resultado conquistado em alguns pacientes - prática chama da "extrapolação de resultados".   

Isolamento? Há grupos que defendem o isolamento somente para grupos de riscos. A premissa desconsidera as mortes entre jovens e o fato de muitas pessoas do grupo de risco viverem com outros familiares.  

Como denunciar um possível médiCo negacionista?

Cremeb O Conselho Regional de Medicina recebe denúncias sobre o comportamento ético de médicos.   

Como fazer  A denúncia precisa ser enviada por escrito ao endereço do órgão, com cópia da carteira de identidade e ccomprovante de residência do denunciante.

Endereço  Rua Guadalajara, nº 175, Morro do Gato, Barra - a denúncia pode ser feita presencialmente ou pelos Correios.