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Coragem, moça. Coragem

  • Foto do(a) author(a) Kátia Borges
  • Kátia Borges

Publicado em 30 de outubro de 2022 às 05:32

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: .

A moça levava no colo um saco plástico desses de supermercado. Dentro dele, a única vida que tinha por sua. Umas notas amassadas de cinco e dez, algumas moedas. Três peças de roupas. Um caderno escangalhado. Um livro sem a capa. Girava entre os dedos, borrados de azul, um papel pautado com o nome e o endereço daquela que seria sua primeira patroa. Dona Magda. Avenida Girassol. Leu em voz baixa.

As palavras, escritas em caprichada letra de forma, pareciam saltar de dentro da folha. Número 64. Número 64. Número 64. Repetiu até cansar. Sentia medo de esquecer o destino certo e se perder naquelas ruas. Enquanto o ônibus cruzava a cidade, do subúrbio ao centro, e as casas iam mudando de tamanho, prédios surgindo, lojas, luzes, foi listando mentalmente o que disseram que faria naquele emprego.

1. Limpar a bunda de um bebê bem remelento. 2. Preparar papas feitas de verduras e frutas. 3. Guardar brinquedos incontáveis vezes... Talvez até deixassem que levasse o pequeno a alguma praça perto. Não parecia tão ruim quanto ariar panelas com bucha de aço, o que consome as unhas. A madrinha já acertara com a patroa o seu salário. Não chegava nem ao mínimo, sem direito a férias ou décimo-terceiro.

Teria ao menos onde dormir, sem medo da chuva forte a corroer o teto, não faltaria comida no prato e havia até a esperança de algum estudo. Há de ser bom, pensou, com um suspiro de consolo. Vai ver essa tal Dona Magda não é um anjo de pessoa? Tentava sem sucesso esquecer as histórias que as amigas contavam. Restos, maus tratos, surras. Sentia mais medo da patroa do que de se perder nas ruas.

Costumava evitar espelhos. Mas se sentara justo em frente a uma divisória de vidro que refletia a cidade lá fora e seu rosto. Ali estava ela, menina ainda, numa fusão esquisita com os letreiros dos prédios, os cabelos ajeitados no alto da cabeça, presos por um elástico, os pés metidos em sandálias remendadas. Os traços tão moços que até dava pena saber que envelheceria algum dia, se houvesse futuro.

Também sentia medo do futuro, assim como temia o encontro com a patroa e esquecer o endereço. Com muito custo aceitara ser conduzida ao matadouro de uma vida dominada. Mas tudo que desejava parecia, naquele instante, inalcançável. Ter sonhos que não fossem apenas os de uma folga aos sábados. É preciso levantar-se agora mesmo, apertar o botão, descer do ônibus. Seguir adiante.