Crônica sobre um lugar seguro

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  • Gabriel Galo

Publicado em 25 de maio de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Então amanheceu como se nada estivesse acontecendo. O primeiro raio de sol passou enevoado pela janela, detalhando os vincos e tramas do tecido da cortina. Ele, sentado na beira da cama, desperto desde quando ainda era escuro, atinou-se ao voo lento, quase parado, da poeira que se fazia visível pelo clarão de través filtrado pelo manto de voal.

Respirou fundo o ar mais fresco da manhã de outono. Encheu os pulmões como num instinto, largos goles de ar, ao que fechou os olhos, respirando em meditação.

Os sons, a cada segundo, aumentavam em frações o volume da vida que não para. Deixou-se levar pela mente. A buzina distante remeteu ao velho carro do pai, da viagem ao interior com gosto de jabuticaba e caju, colhidos no pé por menino descalço, que exibia até metade das canelas um dégradé de barro ativo, da vermelhidão do chão ao ajuste do tom da pele.

O banho de cisterna limpava-lhe as vestes naturais, dando vez ao canto dos pássaros, que saúdam a noite como mãe chamando filho para dentro porque é hora da refeição. A luz claudicante da lamparina sobre a mesa, reluzindo suave nas frontes singelas de pais, irmãos e avô, que ceavam em silêncio grato à sorte do prato farto.

Foi numa manhã de há muito tempo que, no transitar da noite ao dia, de pé antes da hora e da vontade, encontrou o avô sentado na cadeira de balanço da sala mirando o horizonte que se aclarava na janela. Menino de tudo, pôs-se ao lado do velho, que logo ofereceu colo. Pulou numa empolgação contida, sem entender como se comportar em tão desconhecida ocasião.

O sol, tímido, esticou sua testa sobre a colina lá adiante. Emitiu seu aviso de chegada, que entrou, como se pedindo licença, na velha sala para ter com as faces de ambos, pintando o externo com seu brilho, fazendo perceber a poeira planando e o enevoado da noite fria que dava sua vez.

Procurando captar compreensão, virou-se para o avô e o fitou com sorriso no rosto, enquanto uma lágrima solitária escorria à face conforme o corte sobre a pele ressecada. Falou ele, apontando para o longe, “é nessa hora, meu filho, que o tempo para”.

Mais tarde, com o alumiar dançante da chama da lamparina, uniu significados entre os fachos. Cada rompante trêmulo da despedida era também uma descoberta de ângulos e traços distintos. O avô, percebendo o embarque do menino no mundo fantástico do tempo parado, piscou-lhe o olho em aprovação, para em seguida proferir uma colherada maciça em seu prato.

Fez deste um hábito das férias interioranas até o instante em que o velho sorriu pela última vez, com ele em seu colo. Sentiu, enquanto o dia acalentava, a pele do avô a esvair-se de vida, despedindo-se na renovação, em equilíbrio.

Um som estridente interrompe o transe. De volta ao presente, o sol mais alto despintou as cores fantasiosas da manhã em paleta mais limitada. Puxou, então, o ar ainda mais forte, como se inspirando combustível para iniciar a máquina que labutaria mais um dia.

Mantém fielmente o seu ritual matinal. Precisa ver o tempo parar. E, na reconexão com a vida simples de menino descalço no colo do avô, fia-se num tempo de outrora, refugiando-se num local seguro de proteção e afeto, equilibrando a maciez da memória com a dureza de mais um dia na cidade, interpretando, à sua maneira, sinais de que a vida vale a pena.

Gabriel Galo é escritor.