Daquilo que é seu

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  • Kátia Borges

Publicado em 26 de setembro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Uma amiga afirma com admirável convicção que nunca perdeu nada nessa vida. Nem afetos nem objetos. Olho para ela com espanto. Frequentemente, mantenho um olhar infantil de surpresa pregado em meu rosto diante de gente excessivamente convicta. Ela respira fundo, talvez esteja em busca de alguma paciência no diafragma, e argumenta que só podemos perder de verdade aquilo que é nosso.

Faço de conta que compreendo e, enquanto ela explica incontáveis vezes a lógica do desapego, penso em tudo aquilo que já perdi, uma quantidade infinita de Atlântidas. O apartamento classe média de três quartos com uma varanda que dava para o estacionamento aberto, em forma de largo. Um pequeno jardim comunitário com o altar dedicado a uma santa católica, cercado por bancos de cimento.

Lugar tão tranquilo que se podia esquecer documentos no banco do automóvel sem cerrar os vidros. Vira-latas, gatos e cães de todas as cores enchiam o condomínio de graça e eu me orgulhava do modo como os vizinhos tomavam para si o cuidado de toda coisa viva que orbitava a existência naquela vila de prédios, insuspeita em seu silêncio sonolento de rua fechada no movimentado bairro periférico.

Gigantesco e populoso, o logradouro antigo se espalhava qual polvo entre becos estreitos, ladeiras inclinadas e ruelas sem calçamento. Na entrada, pequenos bares orgulhosos exibiam os seus cardápios. E, em toda a extensão gramada do condomínio, podiam ser vistos potes de plástico improvisando comedouros, como se esquecidos ali de propósito para não constranger os bichos famintos.

Parecendo ter ciência desses distraídos afetos, até os micos aguardavam a hora certa para descerem das árvores, deslizando pelos fios elétricos dos postes, e se aproximarem dos humanos, de modo a serem também alimentados. Uma massa pastosa feita de banana amassada fazia as vezes de banquete. E os minúsculos primatas descansavam saciados e sem pressa de retornar às copas verdes.

Seria ir longe demais falar sobre os pássaros, impossível retomar o presente, se me perco agora a listar as pessoas. O som da respiração de minha mãe no quarto ao lado. Nem afetos nem objetos, my friend, sei que nada nessa vida nos pertence. Tudo passa por nós simplesmente, velozmente. Como nos dedos das mãos, vão-se os anéis e resta a sensação de que ali ainda estão. Para sempre.