Delicadeza perdida

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Publicado em 8 de agosto de 2022 às 05:02

- Atualizado há 10 meses

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“Vai chegar o tempo em que todo mundo vai saber para que tudo isso existe, para que servem esses sofrimentos, não vai haver mais nenhum mistério, só que até lá é preciso viver…”. Esta fala é dita pela personagem Irina no ato final da peça Três Irmãs, de Antón Tchékhov. É o desabafo de uma mulher ainda jovem, mas já tomada pelo desencanto, que vê a essência de sua curta existência escorrer pelo ralo da mediocridade e da falta de rumo.

Mas a frase de Irina poderia se referir também a qualquer período específico da trajetória humana, como costuma ocorrer com as obras que, por sua excelência, cantam a sua aldeia e ao mesmo tempo o universo. O cineasta Terrence Malick provavelmente se inspirou nela ao colocar na boca da personagem Fani, do belo drama humanista Uma Vida Oculta, uma frase quase idêntica: “Um tempo virá em que saberemos para que serve tudo isso.”

Tanto Irina quanto Fani tentam abarcar e compreender a tragédia que se abate sobre suas famílias. Como diria Tolstói no clássico parágrafo inicial de Anna Kariênina, “cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. A aristocrática personagem de Tchékhov é testemunha de um país em dissolução que cede lugar a outro, tão desigual quanto. Inerte e infeliz, ela espera um porvir que não chega enquanto o tempo, o amor e os sonhos se dissipam.

Já Fani representa uma das muitas existências anônimas que foram arrancadas do seu mundo prosaico e tragadas pela Grande História durante a Segunda Guerra Mundial. Seu marido, Franz, se recusa a lutar ou ter qualquer participação no conflito, um ato de desobediência civil que custará caro para si mesmo e os seus.

É evidente que Tchékhov e Malick abordam temas bem diferentes, e a impotência que atinge Irina não se compara ao sofrimento que arruina o idílio de Fani. Mas, em ambos os casos, o que permanece é a perplexidade diante de algo complexo demais para a nossa simplicidade.

Transponho essa breve reflexão para o nosso tempo, onde a vida é real e de viés. Penso na mãe que na semana passada viu a filha ser morta na sua frente quando a levava para a escola, em pleno bairro do Campo Grande, Salvador, Bahia, às 6h30 da manhã. Cristal é o nome da garota. Vi sua foto estampada na capa deste jornal e me comovi. Uma adolescente de traços impetuosos, como era minha filha até outro dia, delicada e vulnerável como seu nome sugere.

Fui tomado pelo pasmo diante de um episódio tão descabido em sua brutalidade banal. A arma na mão de uma mulher, o disparo, a queda. Uma família feliz que, em menos de um segundo, passa para o outro lado, o das famílias infelizes.

Não creio que em algum momento a mãe de Cristal vai saber para que tudo isso existe, para que servem esses sofrimentos. Não. Ela ficará eternamente envolta em um halo de incompreensão, dor e saudade. Como já ficaram e ainda ficarão tantas outras mães, vitimadas pela onipresença das armas de fogo em um país que hoje as tem como fetiches. Muitas delas com um pesar que permanece anônimo, obscuro. Porque mães pobres não atraem holofotes, não viram manchetes, não saem nem em pés de página.

Tão importante quanto prender quem apertou o gatilho e matou Cristal deveria ser desvendar como esse revólver chegou até as mãos que o acionaram. Mas solucionar crimes não é uma especialidade nossa, ainda mais em situações que envolvam alguma complexidade investigativa. A dor da mãe de Cristal é uma tragédia individual, mas fruto de uma tragédia coletiva: a incapacidade de um país em prover proteção para todos os seus habitantes, sem exceção.

O assassinato de uma menina tão jovem revela em toda sua sordidez, ou deveria revelar, o profundo fosso em que nós, brasileiros, estamos metidos. Ignoramos a guerra civil não declarada que faz tombar diariamente gente muito nova nas cidades entupidas em que moramos. Não há delicadeza possível em um país que mata com pistolas, revólveres e fuzis milhares de pessoas todos os anos. Aqui, a morte é vulgar, obscena. Mas, como diz Irina, “é preciso viver”. É o que tentamos fazer, caminhando em campo minado e presenciando um mundo em dissolução, uma nova era dos extremos, o apogeu da idiotia.