Destaque no Carnaval, Afrocidade fala sobre estreia em trio do Afropunk

Em entrevista ao CORREIO, banda comenta sobre a passagem no Circuito Dodô

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  • Da Redação

Publicado em 3 de março de 2020 às 15:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Edgar Azevedo/ Divulgação

A mistura potente e dançante do Afrocidade contra as opressões vividas pela juventude negra nas periferias invadiu o Circuito Dodô (Barra-Ondina) em um dos dias mais disputados do Carnaval. Foi na noite de sábado que a banda surgida há sete anos em Camaçari fez sua estreia no trio elétrico. E não era qualquer trio, mas o Navio Pirata da BaianaSystem, que capitaneou a embarcação no dia seguinte.

A participação de Mano Brown durante o desfile potencializou tudo que tinha acontecido até então, viralizou nas redes sociais e, imediatamente, foi classificada como histórica por quem viu o líder do Racionais MCs e os muitos negros presentes ecoarem juntos seus dramas.

Eco ouvido nos cantos dos versos ritmados e afiados do rap, mas também sentido nos movimentos, no gestual e no corpo inteiro de quem se aventurou a seguir o Navio Pirata nos dois dias que ele passou pela Avenida Oceânica - em uma ação conjunta com o Festival Afropunk, que em novembro desembarca pela primeira vez na América Latina, e mais especificamente, no Centro de Convenções de Salvador.

Na frente do trio, uma ala composta por 16 dançarinos coreografados por Guto Cabral e Deivite Marcel, integrantes do Afrocidade, faziam uma referência explícita à tradição dos blocos afros de Salvador, transformando o desfile em um dos mais comentados do Carnaval 2020. Há dois anos, a banda também foi responsável por um dos momentos mais emblemáticos da festa daquele ano, quado subiu ao palco do Largo do Pelourinho acompanhados de Xênia França e Luedji Luna.

"Foi como se estivéssemos retomando o que é nosso", sintetiza José Macedo, vocalista do Afrocidade, sobre a estreia em um trio elétrico no Carnaval. Na entrevista a seguir, ele e outros integrantes da banda fazem um balanço dos dias de folia, comentam sobre a força do rap no Carnaval e antecipam as expectativas para o Afropunk. Confira:

Em 2018, vocês fizeram um dos shows mais comentados do Carnaval. Esse ano, repetiram o feito, mas dessa vez por conta da estreia em um trio elétrico. O que é o Carnaval para o Afrocidade, e como ele dialoga com o que vocês fazem durante todo o ano? José Macedo - O Carnaval para o Afrocidade é uma manifestação de rua e do povo, de fato. Falando em Salvador, onde temos a maior população negra do mundo depois de África, é fazer um resgate das ruas com nossos festejos e manifestações de luta, não deixando de cair no esquecimento a luta que constitui os blocos afros. Flihos de Gandhy, Malê Debalê, Ilê Aiyê, Olodum, Muzenza, todos têm essa essência, e foram os primeiros a manifestar essa força na rua. Quando o processo partiu para um circuito de Avenida e começaram a vir os trios elétricos, a indústria fonográfica se apropriou muito dessa manifestação de rua, e o axé music acabou monopolizando o circuito durante muito tempo, se apropriando da nossa musicalidade negra. Isso instaurou as distâncias com camarotes, corda, cordeiro, povo na rua, ambulante, um lance separatista mesmo. Só que para o Afrocidade aquela essência nunca morreu. Com o passar do tempo, por mais que ainda exista esse classismo no Carnaval, a música está viva. A música dos blocos afros e dos artistas negros permanece viva. O Afrocidade enxerga hoje o Carnaval de rua mais preto, estamos retomando o que é nosso. No dia que a gente saiu foi um circuito preto: O Poeta, A Dama, a gente com o desfile Afropunk em que convidamos diversos artistas pretos da resistência, seguido do Aya Bass, com Larissa, Luedji e Xenia. A gente fez uma ala preta na Avendida! Hoje o Carnaval representa isso!

Hoje, há uma profusão de novos nomes fazendo misturas de ritmos e gêneros a partir do rap em Salvador e Região Metropolitana (mas também no mundo todo). Acreditam que seja algo geracional? Porque? José Macedo - Eu acredito muito que isso é geracional, estamos falando de gerações. Lá atrás, quando o pagode entrou num processo de empoderamento, com as letras, e trazendo um contexto mais politizado, tinha o Parangolé, com Nenel e Bambam, falando de orixá, com músicas com contexto histórico, como os blocos afro, afirmando mais nossa raiz afro-brasileira. Com o Fantasmão, começou a vir as letras com as críticas sociais com EdCity, que compunha coisas no groove arrastado, que tinha influência do rap muito grande. Inclusive, ele colocava em shows ao vivo trechos de MV Bill, de Racionais MCs, que ele adaptava. O tempo foi passando, e é muito influência de quem viveu lá atrás. Quando eu falo dessa queda do axé music, foi ela que deu força para esse pagode preto vir, com críticas sociais, com liberdade de expressão para falar sobre o cotidiano da periferia. Poder falar da criminalidade, que o bicho está pegando, poder falar de sexualidade como uma fonte de poder, desmistificando padrões, estabelecendo essa conexão ancestral. Nosso corpo é nosso grito, é nossa manifestação, é rebeldia. Lá atrás já acendeu essa chama. A gente vê hoje nessa nova cena a BaianaSystem que começou a fazer a ressignificação da musicalidade baiana com o soundsystem jamaicano e o rap. O Attoxxa pegou o pagodão sintetizando os ritmos e uma veia forte de trap. Eu sou MC, e trago isso nas minhas letras, na minha métrica, através do rap com o pagode.  Acho que isso vem passando de geração em geração e hoje a gente vem muito mais empoderado, muito mais resistente. A gente sempre recebeu o enlatado da música norte-americana, e aí você vê o Nação Zumbi, a antena parabólica que surge da lama. O rap é uma ressignificação de ritmos pretos norte-americanos, a galera sampleava o blues, o jazz, o funk, o soul. Quando a gente vem pra cá, a gente vê que tem algo que é só nosso. Gerações lá atrás começaram a ver isso, e foram propagando. Continuamos ressignificando nossas batidas populares, e levando pro rap também. Eu enxergo dessa forma. A gente vê uma molecada monstra fazendo isso: Vandal, Cronista do Morro, Underismo, Baco Exu do Blues, Makonnen Tafari...

Tem uma cena forte, né?José Macedo - A gente vê uma nova cena preta indepente surgir após a queda da axé music. Estamos renascendo, e o sábado de Carnaval foi um feito que demarcou muito isso que venho falando, com esse aspecto de resistência. O que a gente vem fazendo ao longo do tempo, durante os outros dias do ano, é um aquecimento, porque o Carnaval é a maior festa de rua que temos. Esse aquilombamento já vem acontecendo, por exemplo, quando a gente faz o Afrobaile em Camaçari, em Salvador. É uma estratégia de guerra para aquilombar a juventude preta, semeando a ideia e a consciência através da resistência, do empoderamento. 

O Racionais é muito mais que um grupo de rap é um movimento, o Afrocidade é muito mais que uma banda é um movimento, o Afrocidade é muito mais que uma banda, é um movimento; o Afropunk é um movimento, que faz dialogar a América do Norte preta com a América Latina preta. Os dançarinos Guto Cabral e Deivite Marcel (Foto: Sarraf) No Carnaval, vocês saíram com uma ala de dançarinos, cuja coreografia foi coordenada por Deivite e Guto. Conta um pouco sobre essa ideia. Quem eram os dançarinos? Por que sair com uma ala assim em frente ao trio? E como isso dialoga com a própria proposta do Afrocidade? Guto Cabral- A ideia surgiu primeiramente porque o trio não tinha espaço para acolher a dança, e como a dança é uma de nossas principais características no show, não poderíamos deixar de ocupar aquele espaço na frente do trio. Eu e Deivite juntamos nosso bonde de Camaçari, 16 dançarinos do Balett Groovado, com esse propósito. Isso também por entender que muita gente compreende o som do Afrocidade  a partir da dança. Além disso, tem a representação da dança periférica desde os blocos afros e a força da dança de rua, que inspira a mim e a Deivite. A gente sempre busca nos momentos de criação da coreografia ter a mescla entre o gestual e o dançante; tem coreografias que dialogam mais com o protesto contido em nossas letras. E isso é o que o bloco afro já fazia: sempre na frente da percussão tinha um grupo enorme dançando, expressando a força e a luta através das coreografias. É aí que a gente busca nossas referências.

Como foi criado o Afrobaile e no que festas como essa, criadas pelas próprias bandas, contribui para o fortalecimento da cena? Pergunto isso porque também vou entrevistar a Underismo, que faz o Baile Under, e cujos integrantes tinham se conhecido em batalhas de rimas... José Macedo - O Afrobaile surgiu quando precisávamos de um espaço para fazer som. Com isso, proporcionamos a aproximação das comunidades periféricas de Camaçari, uma unificação, um lugar pra onde a juventude preta estava indo para se afirmar. Poderia ir vestida como quisesse, meter dança como quisesse. O Afrobaile foi essencial para isso. A gente está no processo de reeducação cultural, um trabalho de formiguinha. Entretenimento e diversão também. É importante que a cena local tenha referências e capitalização também. Um exemplo: você começa a fazer uma batalha de rima na rua, massa, mas quando ela encontra um espaço, vai entrar uma renda que vai chegar em quem precisa. É uma fonte de renda para comunidade. Dançarinos do Ballet Groovado, de Camaçari (Foto: Edgar Azevedo/ Divulgação) No Carnaval, vocês tiveram convidados de peso, e nessa cena, muito do que é construído é assim, coletivamente. Fala um pouco sobre a Cronista do Morro, que é uma das artistas que iremos apresentar na matéria! Fernanda Maia - O Afrocidade traz esse conceito de mentes pensantes, e que trazem um pouco de cada um. Trazer convidados para a estreia no Carnaval é algo muito nosso. A gente surge desse movimento coletivo, e não quer perder isso, de agregar sempre mais pessoas nesse mesmo fluxo. A gente talvez tenha demorado mais de entrar nesse cenário, por conta da ausência desses empurrões, desses auxílios, desses convites. Falar da Cronista, eu sou um pouco suspeita, porque eu sou fã de carteirinha, ela tem muita consciência do que ela coloca para fora enquanto canta, é muito da realidade vivida por ela. Para além da estética, ela consegue colocar para fora muito sentimento, e eu acho algo de muita verdade. 

Falando nisso, quais artistas e bandas formadas por jovens negros da Bahia vocês indicariam para a galera ficar de olho? Fernanda Maia - A música baiana vem passando por um recapeamento, e muita coisa vem surgindo. A gente tem a Josyara, uma preta barril que escreve e canta muito, tem os meninos do TrapFunk&Alivio, tem OQuadro, tem uma galera massa que já está na estrada há um tempão e vem buscando seu espaço, e que a qualquer momento vocês vão ouvir falar. Outro nome, que na verdade é de Pernambuco, mas quem curte rap tem que sacar é o da Jéssica Caetano. Fernanda Maia, percussionista do Afrocidade (Foto: Edgar Azevedo/ Divulgação) Por fim, o Afropunk ta vindo aí, uma vitrine internacional que de algum modo está de olho no que é produzido aqui por essa galera.  Quais as expectativas para a realização do festival em Salvador? José Macedo - As expectativas são as mais positivas possíveis. Que a gente possa estar lá fazendo nosso trabalho, com fé em Jah e no universo se der tudo certinho. O Afropunk é um movimento norte-americano, do Brooklyn, em Nova York. É transitar entre esses dois lugares, porque  gente vê que é a mesma parada, e é um pouco do que respondi anteriormente. A música preta que eles fazem lá tem as mesmas  bases da música preta daqui. Os caras criaram o rap com a música popular deles. É dialogar tanto na questão musical, quando na questão cotidiana. A expectativa positiva a maior possível, e que eles possam enxergar que aqui existe movimentos tão fortes quanto o que eles têm lá. A gente ta germinando, mas vários movimentos de lá nos inspiraram. Se não fosse o Pantera Negra, não existiria Racionais, que é inspiração para todos nós.Poder ver a Bahia nos EUA, poder ver nossos vídeos, nossas paradas tocando lá...E o preto de lá se indentificando com a música daqui da mesma forma que a gente se inspirou na música deles. A gente hoje ser inspiração para os pretos de Nova York, do Brooklyn, para que a música preta brasileira seja inspiração para os pretos de lá e a gente só se unifique, porque as questões políticas que englobam toda humanidade a gente sofre muito, somos os alvos dessa estratégia genocida da população negra. A gente vê uma desarticulação do poder preto e periférico na América com o neoliberalismo se articulando. Obama sai do poder lá, Lula sai do poder aqui, e aí entra Trump, entra Bolsonaro. É uma articulação que não é coincidência.