Do ponto de ônibus ao botequim: produtores falam do samba de Riachão

Irreverência e simplicidade estão entre os destaques do cronista de Salvador

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  • Laura Fernades

Publicado em 31 de março de 2020 às 04:59

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Angeluci Figueiredo/Arquivo Correio

“Riachão era samba, era alegria. Fazia samba no ponto de ônibus, no botequim… A vida dele era dar alegria à vida das pessoas”, resume o produtor musical e sambista Paulinho Timor, 37 anos, que trabalhava com Riachão desde 2013 e está produzindo um disco inédito do artista. Essa é a importância do sambista baiano para a música nacional, em sua opinião.

Ativista cultural do samba há mais de 20 anos e acostumado a acompanhar os bambas, Paulinho lembra que o impacto foi imediato quando escutou o clássico Humanenochum (2000), um dos poucos discos gravados por Riachão. Por causa dele, o produtor saiu de São Paulo e foi bater na porta de sua casa, no Garcia. 

“Quando ouvi esse disco pela primeira vez, pensei ‘meu Deus, tenho que conhecer esse cara’. Fui à Bahia, perguntei onde ficava a casa dele e disse ‘quero te conhecer’”, lembra. A partir de então, a amizade surgiu e veio o convite de Riachão: “Menino, malandro, quero que você seja minha banda”.

Paulinho conta que a reação não podia ser outra. “Na minha opinião, ele era o sambista de maior importância de toda a história de samba da Bahia. O Caetano, o Gil e o Caymmi são ícones da musica popular brasileira, mas para o samba, o Riachão era mais que os três juntos”, elogia.

Cambalhota A irreverência sempre foi uma marca forte de Riachão e isso conquistou muita gente. Enquanto sambistas como Ederaldo Gentil (1947-2012) e Batatinha (1924-1997) se apresentavam tranquilos com seu violão e sua caixinha de fósforo, respectivamente, Riachão dava cambalhotas – literalmente – entre um verso e outro.

Foi isso o que chamou a atenção de Paquito e J. Velloso, produtores musicais de Humanenochum. O encontro aconteceu quando os dois estavam produzindo o disco Diplomacia, de Batatinha, que contava com a participação de amigos sambistas do anfitrião. Riachão chegou depois de todo mundo e chamou a atenção pelo jeito de se articular.

“Ele era um performer mesmo. Era apaixonante. Foi aí que eu disse: ‘O próximo disco é o dele’”, lembra Paquito, que na época acabou aprendendo muito sobre o samba na Bahia. Este era representado por Batatinha e Riachão, “opostos complementares”, em sua opinião. “Batatinha melancólico, Riachão alegre, expansivo”, compara Paquito.

Para o produtor, que ouviu o sambista cantarolar a música Vá Morar com o Diabo pela primeira vez em uma fila de banco, a música carnavalesca da Bahia  deve muito a essa “alegria desmedida” de Riachão. “Ele vivia integralmente a música no corpo, sambava lindamente com 80 anos, parecia que estava flutuando. Se você olhar ele no palco, sempre aceso, vê que axé music é isso. Isso é muito baiano, para o bem e para o mal”, pondera.

Genuíno Diferente do samba do Rio de Janeiro, na música de Riachão não havia queixa, lembra a cantora Vania Abreu, responsável pelo disco Mundão de Ouro (2012) e autora do livro Eu e Meu Lugar, inspirado na trajetória do sambista. “Era um samba combativo, político, de denúncia”, explica Vania.

Nas letras, que faziam dele o cronista de Salvador, a simplicidade da vida na capital, narrada através de seus sentimentos. “Ele tinha quase que um olhar fotográfico das cenas, e ele falava dentro da simplicidade dele. Via tudo com alegria”, cita a cantora. 

Inspirado no samba de roda com estrofes curtas e fáceis de serem repetidas, Riachão mostrava uma arte genuína, instintiva e que não passava por nenhum conhecimento formal. “Não são frases pensadas. Ao modo Riachão, o pensamento musical vai fluindo através do pensamento”, conta o maestro Fred Dantas, que tocou com Riachão em alguns de seus discos e rodou o mundo em turnê com ele.

“Uma lição que Riachão nos deixa é que os artistas pararam de pensar na eterna migração para o Sul do país. Ele cantava o amor a Salvador, às suas virtudes, aos acontecimentos, além de fazer uma louvação à mulher”, elogia Fred.

“Tinha uma leveza e ingenuidade no tratamento dos assuntos. E essa coisa do cronista nos volta ao ‘amar Salvador’. Ele morreu quase no dia do aniversário da cidade”, observa, sobre o sambista que quando era questionado por Paquito sobre se o samba nasceu na Bahia, não hesitava na resposta. “Claro, o Brasil nasceu na Bahia!”.