Duas séries em uma: como a rede pública vai se adequar ao ensino remoto?

Entenda por que o ano letivo de 2020 ainda não acabou na educação pública e os desafios que a rede vai precisar enfrentar para cumprir 1,5 mil horas/aula

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  • Priscila Natividade

Publicado em 21 de fevereiro de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ilustração: Morgana Lima/Casa Grida

Quase 1,5 mil horas/aula para serem cumpridas em 2021. No novo currículo, conteúdos essenciais e ênfase nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. Nessa longa jornada até alcançar o resultado, o ciclo contínuo com duas séries ao mesmo tempo é só um dos desafios que o ensino remoto na rede pública vai precisar enfrentar para não perder o ano na pandemia. A conta 1 + 1 não está assim tão fácil de resolver.  

“No ano passado, as aulas foram interrompidas e não houve uma adesão maciça de professores para oferecer o ensino remoto. De fevereiro a março, só cumprimos 108 horas das 800 obrigatórias, exigidas pelo Ministério da Educação (MEC). A esse número, temos que somar mais 800, relativas a 2021. Ou seja, são 1.492 horas/aula a serem compensadas”, afirma o secretário municipal de Educação (Smed), Marcelo Oliveira. 

A rede tem, atualmente, 433 unidades escolares onde estão matriculadas 142 mil alunos. São 761 coordenadores pedagógicos e 7.642 professores. Na segunda-feira (22), os estudantes passam a ter aulas remotas que serão usadas no cumprimento dessa carga horária. As aulas serão exibidas em dois canais, inicialmente: o 4.2 (Anos Iniciais e EJA I) e o 4.3 (Anos Finais, Regularização de Fluxo e EJA II). A TV Câmara vai reproduzir toda a programação e as aulas serão disponibilizadas no Youtube da Smed.  “Fazíamos a transmissão das aulas via TV no ano passado, mas vamos recomeçar do zero. Contamos com professores da rede que foram treinados para fazer essas apresentações. Os demais educadores vão supervisionar e acompanhar os alunos via grupos de Whatsapp”, completa o secretário, que espera dobrar, em breve, o número de canais de TV.  Já na rede estadual de Educação (SEC-BA), o secretário Jerônimo Rodrigues ainda não tem uma posição sobre a implementação da educação remota. No último ano, apenas 100 horas/aula foram cumpridas. Ou seja, somando dois anos, são 1,5 mil horas/ aula. Durante a participação na audiência pública  promovida pela Assembleia Legislativa da Bahia (Alba), que aconteceu no início da semana, o secretário anunciou o Programa Mais Estudo. 

“O esforço até agora é o de salvar vidas e continua sendo este. Mas tudo o que for possível fazer para apoiar os estudantes no processo de aprendizagem será feito. Uma das medidas anunciadas pelo governador, neste sentido, é o Mais Estudo. Com isso, teremos 52 mil estudantes que ajudarão os colegas nas aprendizagens de Língua Portuguesa e Matemática”.  

Ao CORREIO, quando questionada sobre a previsão de implementação do ensino remoto na rede estadual, a SEC disse em nota que uma frente de trabalho foi formada pelo Governo do Estado para um protocolo unificado de volta às aulas.“Do que já foi pactuado no protocolo conjunto, estão regras de higienização, distanciamento social e a obrigatoriedade do uso da máscara. Já pelo pedagógico, com o ensino híbrido, o estudante passará parte do tempo na escola e parte em casa, com atividades complementares”. Aproximadamente, 780 mil estudantes estão matriculados na rede estadual de ensino nas 1.111 escolas. Destas, 207 escolas estão instaladas em Salvador, com 190 mil alunos matriculados e mais de 7 mil professores. São 31 mil professores no total.  

Para o professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Nelson Pretto, o mais importante é que a educação não fique presa ao que era normal. “O que precisamos é aproveitar o momento emergencial e experimentar novas possibilidades e formatos. Existe uma desigualdade digital inaceitável. E isso vai da presença desde um computador em casa até a recepção da televisão. É algo que tem que estar na pauta prioritária muito mais até que o conteúdo”.  Novo currículo  Coordenadora do Fórum Estadual de Educação da Bahia (FEEBA) e também professora da Faculdade de Educação da Ufba, Alessandra Assis, explica o que é o Calendário Continuum 2020/2021 e como essa reformulação vai impactar a educação pública.  “Há consenso entre especialistas e gestores da educação sobre o uso de atividades não presenciais como forma de amenizar as perdas, manter o vínculo do estudante com a escola, criar condições para que aprendam algum conteúdo. A adoção do Continuum é uma forma de reorganizar a carga horária, de caráter excepcional e emergencial, orientada por resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE)”. A FEEBA elaborou um documento apresentado  à SEC-BA e à Alba, em que propõe a organização do ensino em três fases, como complementa Alessandra: “Primeiro, a retomada imediata das aulas, com a realização de atividades não presenciais. Seja através de meio digital, analógico, de materiais impressos e outros, as escolas públicas devem lançar mão de diferentes tecnologias educacionais, utilizando múltiplas linguagens”. 

As outras etapas consistem na preparação para adoção do ensino híbrido e posteriormente, presencial, levando em conta as condições sanitárias. “Estas fases seguintes vão considerar as aprendizagens que, por natureza da pandemia, não foram possíveis de serem trabalhadas”.  

É a avó de Agatha Luiza, aluna do 8º ano em uma das escolas da rede municipal, que faz questão de acompanhar as atividades escolares da neta. A dona de casa Alzinéia Gonçalves, conta que Agatha faz todas as atividades que o colégio envia.  “A gente sabe que ficam algumas dúvidas, mas vejo que escola vai tentando fazer o possível. Me apertei para ela ter um celular só dela que permitisse baixar aplicativos e sento com Agatha diariamente para ver as atividades.  Aprendi muitas coisas nessa pandemia porque passei a estudar de novo, junto com ela”.    

Em uma escola pública que não teve nenhuma possibilidade de aula remota, a lacuna é em dobro, comparada com a rede de escolas particulares. O desafio é não aprofundar as desigualdades históricas que já existem no sistema de ensino, como defende a doutora e professora na Faculdade de Educação da Ufba, Telma Brito Rocha.  “O ideal é que tivéssemos uma qualidade comunicacional, mais interação online com atividades síncronas (tempo real), mas sabemos da nossa exclusão digital entre os mais pobres. Neste caso, a escola tem que fazer chegar sim, materiais impressos, aulas pela TV, pelo rádio. Propor alguma atividade e manter o vínculo com os alunos, com o objetivo de garantir esse direito à Educação”, comenta a especialista. Na linha de frente Mãe de Rayana, a assistente social Andréa Santana está contando com o apoio de professores voluntários para reforçar os conteúdos de Matemática e Língua Portuguesa. Rayana vai cursar, simultaneamente, o 7°/8° ano do Ensino Fundamental. “Eu que acompanho minha filha em tudo. A escola se empenha, mas penso que o professor precisa dar um apoio maior. Eu tive que buscar ajuda para dar esse suporte. Mesmo assim, estou ali junto, pergunto sempre qual a dúvida e vou estudando com ela”. 

Mas esse professor está preparado? Quem questiona é o coordenador de projetos da organização sem fins lucrativos, Todos Pela Educação, Ivan Gontijo. “Temos aí a tarefa de combinar dois modelos que, por muitas vezes, a educação não estava fazendo tão bem antes. Por isso é urgente uma formação consolidada dos professores. Como estruturar um planejamento que atinja o ensino remoto sem aumentar as lacunas? É essencial um mapeamento sobre o acesso desses alunos, ampliar a conectividade, adequar a metodologia e formar muito bem os professores para lidarem com isso”, argumenta Gontijo. 

Maíse Balbino ensina Língua Portuguesa na rede pública em seis turmas do 6º ao 9º ano. Ela recorreu à novas metodologias e passou a estabelecer outras metas de aprendizagem. “As mudanças na prática pedagógica se fazem necessárias. A rede de ensino lançou as orientações pedagógicas para os próximos meses, e ainda estamos revendo alguns pontos. O fato é que escola precisa ser atrativa, praticar a afetividade e a escuta de forma simultânea, ou seja, passar por esse processo de reconstrução”, afirma.  

Caminhos Além dos conteúdos previstos nas orientações e diretrizes educacionais, outro ponto está no acolhimento dos estudantes e educadores em todas as dimensões, como defende a professora da Faculdade de Educação da Ufba e Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil, Crianças e Infâncias (GEPEICI), Marlene Oliveira dos Santos. 

“As experiências vividas na pandemia devem ser incluídas na proposta pedagógica e curricular. Olhar para o estudante e para os docentes em suas múltiplas dimensões, demandas e potências é um compromisso ético e político que precisa ser assumido pelo poder público”.   

COMO FICA O ENSINO REMOTO NA REDE PÚBLICA?

1. O que é o Calendário Continuum 2020/2021? É a reorganização da carga horária em ciclos de duas séries em um ano. Em 2020, devido à pandemia, que suspendeu as aulas presenciais, tanto a rede estadual quanto o município de Salvador não aderiram à educação remota para cumprimento da carga horária exigida pelo MEC de 800 horas.

2. Como serão as aulas remotas na rede municipal de Salvador? A partir de segunda-feira (22), as aulas serão transmitidas nos canais 4.2 e 4.3, inclusive, para estudantes de Educação Infantil. As escolas vão distribuir semanalmente cadernos de atividades e os professores vão fazer o acompanhamento por grupos de Whatsapp. 

3. E na rede estadual?  Ao Correio, a Secretaria de Educação do Estado (SEC) não se posicionou sobre a implementação do sistema de educação remota. Porém, ao apresentar o protocolo de retomada das escolas em audiência pública promovida pela ALBA, a secretaria confirmou a presença da educação híbrida no plano. 

4. Qual a situação dos alunos que vão migrar de uma rede para outra?  Segundo o secretário de Educação de Salvador, Marcelo Oliveira, a migração vai depender da data de abertura de matrícula pelo estado. “Combinamos com a SEC que fosse feita uma avaliação de conteúdos com esse aluno”.

5. O que o conteúdo essencial vai enfatizar? Em Salvador, A Smed sinalizou uma atenção maior no novo programa nas disciplinas de Português e Matemática. Já a SEC-BA, anunciou o lançamento do Programa Mais Estudo que prevê o estímulo a aulas de monitoria entre alunos nessas duas disciplinas. 

EDUCAÇÃO INFANTIL TERÁ ATIVIDADES E ESPAÇO NA TV Os alunos da Educação Infantil das escolas da rede municipal vão passar a contar com um espaço na programação dos canais de televisão, além de atividades impressas distribuídas na escola. De acordo com o secretário municipal de Educação de Salvador (Smed), Marcelo Oliveira, o objetivo é proporcionar o acesso ao ensino remoto aos pequenos, na tentativa de manter o vínculo com a escola. “Ainda que em volume e intensidade menor, comparado aos estudantes do ensino fundamental, são iniciativas importantes para os menores já que estão sem aulas presenciais”, ressalta.  

A Smed, inclusive, está cadastrando, no site educacao.salvador.ba.gov.br, crianças entre 2 e 5 anos que estejam fora da escola. Se o estudante já estuda na Rede Pública Municipal de Ensino, não será necessário realizar o cadastro, exceto se quiser transferência de uma escola municipal para outra. O prazo para a Educação Infantil termina no dia 3 de março (quarta-feira).

SMED NÃO DESCARTA A CONTRATAÇÃO DE NOVOS PROFESSORES Assim que houver uma previsão de data para o retorno às aulas presenciais, a rede municipal de ensino deve convocar 150 professores aprovados no último concurso realizado pela Smed, há dois anos. Segundo o secretário Marcelo Oliveira, esses profissionais serão contratados temporariamente sob o Regime Especial de Direito Administrativo (Reda).  “Eles devem atuar na sala de aula em substituição aos professores com comorbidades, que vão fazer o acompanhamento dos seus alunos na fase remota”, adianta. 

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O gestor da pasta não descarta também a possibilidade de abrir um chamado para um novo concurso para dar conta do cumprimento das 1.492 horas/ aula do Calendário Continuum 2020/2021. “Ainda não temos como estimar o número de vagas de Reda, tudo vai depender do processo de adequação ao ensino híbrido (remoto e presencial)”, completa.