É hoje: domingo é dia da semana no qual mais se mata em Salvador

De 2011 para cá, 3.224 pessoas foram assassinadas no primeiro dia da semana

Publicado em 14 de julho de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Shutterstock/Reprodução
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Era domingo, o dia que mais se mata em Salvador. Naquele 9 de julho de 2017, há quase dois anos, a comerciante Nadjane Santos de Jesus, 30 anos, fez o que costumava, mesmo aos finais de semana: acordou cedo. Às 5h, estendeu as roupas no varal de casa, em Itapuã; depois, saiu a pé para comprar feijão fradinho para o almoço de domingo na casa da irmã; às 6h, foi vista por vizinhos passeando com o cachorro, Mayck. Só que o cão voltou sozinho. Foi aí que o marido, Eviton, deu por falta de Nadjane. Ela foi achada morta três horas e meia depois, na Estrada CIA/Aeroporto. Estava nua, o corpo tinha marcas de espancamento e violência sexual.

Aquela Nadjane, que costumava passar os finais de semana em Santo Amaro ou Madre de Deus, voltou para casa na véspera do crime porque queria tranquilidade para assistir à estreia da seleção feminina de vôlei no Grand Prix, contra a Bélgica. Era apaixonada por vôlei e descrita pelo marido como uma mulher dura, autoritária. Por isso mesmo, não aceitou a sugestão do marido de ver o jogo na casa da irmã.

Confira todas as matérias do especial 1.000 Vidas e baixe planilha de dados“Com ela, não tinha esse negócio de não. Era sim e acabou”, recorda Eviton Gomes.Ela não resistiu à violência. As fotos de Nadjane ainda estão espalhadas pela casa e a mãe dela decidiu deixar Salvador, enquanto o réu confesso do crime, João Paulo Castro Moreira, ainda aguarda um julgamento sem data para acontecer.“A mãe dela morre aos poucos, diz que só vai respirar quando o juiz der a sentença. Mas eu queria ver ele pagar com a própria vida”, desabafa.Mais uma audiência de instrução do caso foi marcada para o dia 13 de agosto, às 10h.

Nos últimos oito anos e seis meses, 3.224 pessoas foram assassinadas em dias de domingo em Salvador e Região Metropolitana (RMS). É o dia da semana mais violento. Naquele mesmo 9 de julho de 2017, por exemplo, outras três pessoas foram assassinadas: uma na capital e duas em Lauro de Freitas, na RMS. Só este ano, das 745 pessoas assassinadas até 30 junho, 139 foram mortas no primeiro dia da semana – 18,6% do total. No primeiro domingo deste mês, dia 7, foi registrada mais uma morte. Infografia: CORREIO Gráficos Os dados foram coletados pelo CORREIO nos boletins diários de óbitos divulgados pela Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA). São todas vítimas dos chamados crimes violentos letais intencionais (CVLIs), que incluem, além dos homicídios, os latrocínios – roubos seguidos de morte – e as lesões corporais seguidas de morte. Foram 2.970 homens e 240 mulheres mortas – 13 pessoas não tiveram o sexo identificado.

Significa dizer que, dos 16.625 CVLIs ocorridos em Salvador e nas outras 12 cidades da RMS em oito anos, 19,39% aconteceram entre 0h e 23h59 de domingos. Em média, oito assassinatos para cada um dos 388 domingos nesse período.

Em apenas um deles não houve crimes. O domingo de paz foi 2 de abril de 2017. Por outro lado, no dia 5 de fevereiro de 2012, durante uma das greves da Polícia Militar da Bahia, o número de crimes no domingo chegou a 18 – mais que o dobro da média diária contabilizada pelo CORREIO.

Logo após domingo, sábado é o dia mais violento (16,6%), seguido da sexta-feira (14,1%), segunda (12,7%), quarta (12,6%), quinta (12,4%) e, por fim, da terça-feira (11,9%).  Infografia: CORREIO Gráficos Álcool e acerto de contas Para o sociólogo e professor Luiz Cláudio Lourenço, um dos coordenadores do Laboratório de Estudos Sobre Crime e Sociedades (Lassos), da Universidade Federal da Bahia (Ufba), os crimes nos finais de semana são, mesmo, mais recorrentes. Não por acaso, logo após o domingo, os crimes nos sábados foram os mais numerosos: 2.760 de janeiro de 2011 a 30 de junho de 2019.

Lourenço diz que é difícil apontar uma explicação para o fenômeno, mas é possível levantar algumas hipóteses que tornam o domingo o dia mais violento.“O fim de semana é mais complicado, porque é o momento em que as pessoas se encontram e, em alguns casos, elas partem para o acerto de contas”, afirma ele.Mas não são só os CVLIs que aumentam nesses dias.“Também é o momento em que as pessoas ingerem mais álcool e os conflitos interpessoais tendem a aumentar. Inclusive, aumentam outros crimes ligados a esses conflitos, como violência doméstica”, avalia.Foi o que aconteceu na cidade de Muritiba, no Recôncavo Baiano, no dia 7 de abril deste ano. Naquele domingo, Lucival de Oliveira Rodrigues, 33, discutiu com a esposa por ciúmes. A filha mais velha do casal, Michele Magalhães Rodrigues, de apenas 10 anos, tentou separar a briga dos pais, mas Lucival disparou duas vezes contra a menina, que morreu no local. O filho mais novo, de 5 anos, também foi baleado. Lucival foi encontrado enforcado três dias depois, em Lauro de Freitas.

A mistura de álcool com aglomerações também pode explicar o cenário, aponta Lourenço. Em 2018, quatro pessoas foram mortas em Camaçari, na RMS, em uma festa de paredão no Domingo de Páscoa. A chacina aconteceu após um Baba de Saia. Homens encapuzados chegaram ao local e atiraram contra os alvos, que participavam da festa. Segundo a polícia, o alvo era um grupo rival. Infografia: CORREIO Gráficos Comportamento Pensar o domingo como sinônimo de dia violento não deveria ser comum. Socialmente, o primeiro dia da semana é conhecido pela rotina diferenciada, pelo descanso, pelo reencontro com família, amigos. Os mais religiosos costumam ir à igreja. O arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, dom Murilo Krieger, explica que é um dia de festa.“É o dia em que se celebra a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte”, afirma.Para o pastor Isaías Andrade Lins Filho, da Igreja Batista dos Mares, o domingo é o dia do Senhor:“Seria para os cristãos o sabbath, o dia do descanso. Uma das razões de os cristãos se encontrarem no domingo é que Cristo ressuscitou ao terceiro dia, no domingo. Os cristãos da igreja primitiva se reuniam no primeiro dia da semana desde os primórdios do cristianismo”.Apesar disso, enquanto uns se reúnem para confraternizar, outro aproveitam os encontros para os conflitos.“Muitos familiares e amigos marcam encontros e almoços, a bebida corre solta, tem início alguma discussão. Crescem os desentendimentos e, a partir daí, falta apenas um passo para algum ato violento. O grave é que muitos já vão para esses encontros armados. Isso mostra uma predisposição para o conflito”, afirma dom Murilo. Infografia: CORREIO Gráficos Mais vigilância Para Luiz Cláudio Lourenço, diante do conhecimento de que os finais de semana são mais propícios aos crimes, há estratégias que podem ser adotadas. “É, justamente, aumentar a vigilância, de uma forma a mediar possíveis conflitos que pudessem redundar em violência em bares, em lugares de aglomeração”, sugere.“Também poderia haver uma prática de acionar um serviço de pronto-atendimento de saúde mais eficaz para casos de violência”, aponta.Questionada sobre os finais de semana, a SSP-BA não se manifestou, mas informou as mortes violentas na Bahia têm caído nos últimos seis anos, e que “o trabalho integrado das polícias Militar, Civil e Técnica é a principal razão pela queda”.

A pasta também informou que “as ações de inteligência, preventivas e ostensivas são focadas no combate ao tráfico de drogas, pois 80% das mortes têm ligação com essa prática criminosa. A renovação das estruturas policiais, com ênfase na tecnologia, também colaborou para a redução dos índices criminais”.

2012: o ano mais violento Nos últimos oito anos e meio, mais de 16 mil crimes violentos letais intencionais (CVLIs) foram registrados pela SSP-BA em Salvador e Região Metropolitana (RMS). No entanto, o ano de 2012 se destaca como aquele com o maior número de crimes desse tipo registrados. Foram 2.355 assassinatos em 366 dias – uma média de 6,4 mortes por dia e mais de 196 por mês. Infografia: CORREIO Gráficos No ano anterior, por exemplo, a média dos crimes violentos apontou para  159 mortes por mês, enquanto em 2018, ano com o menor número de mortes, a média mensal foi de 135 - a média diária chegou a 4,4.

Uma explicação pode estar em uma das maiores greves da Polícia Militar registradas nos últimos anos. Foram 11 dias, entre 31 de janeiro e 10 de fevereiro de 2012. O pico de assassinatos, no entanto, ocorreu a partir do dia 2 de fevereiro e seguiu até o dia seguinte ao fim da greve, 11 de fevereiro. Nesses nove dias – um terço do mês –, foram contabilizadas 179 mortes – mais do que a média mensal no ano inteiro.

Foi durante outra greve da PM, em 2014, que se registrou o dia com mais CVLIs: foram 37 no dia 16 de abril de 2014, uma quarta-feira.

1000 Vidas A série de reportagens 1000 Vidas, que inaugurou o jornalismo de dados no CORREIO, é publicada desde 2011, unindo reportagem e infografia. O trabalhofoi premiado e disputou competições internacionais. Ela é veiculada sempre que o número de crimes violentos letais intencionais (CVLIs) em Salvador e Região Metropolitana (RMS) alcança o número 1.000. Desde o início do ano passado, porém, a Secretaria da Segurança Pública da Bahia (SSP-BA) vem retirando os dados do ar sistematicamente. Atualmente, por exemplo, só é possível verificar os boletins diários desde o dia 1º de fevereiro de 2019.

A falta dos dados de agosto do ano passado adiou a publicação até que os números fossem recuperados, o que só ocorreu no dia 10 de junho, cerca de nove meses após o primeiro pedido, via Lei de Acesso à Informação. Foram feitos pedidos por formulários e telefone à Ouvidoria da SSP-BA. Quando liberados, os dados não continham nome da vítima, local preciso do crime e idade. Dados completos foram enviadas dia 28.

Em 2018, a milésima morte aconteceu em 3 de agosto. A vítima foi Alexandro Almeida Santos. Ele tinha 34 anos e foi morto na Rua Lima e Silva, em frente ao Colégio Duque de Caxias, na Liberdade. O ano terminou com o menor número de homicídios desde 2011: 1.627. Foi também o ano em que a milésima morte aconteceu mais tarde, em agosto. 

Questionada, a SSP-BA não informou por que vem retirando os boletins do ar, mas disse, em nota, que “o link Boletim não serve como estatística” e que divulga balanços periódicos de crimes contra a vida e mantém esses dados no site. Com esses dados, porém, não é possível traçar o perfil das vítimas.