‘Eles transportam sonhos’: o dia a dia de um entregador em Salvador

Malas, cachorros, corações partidos, eles carregam de tudo nessa quarentena

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  • Gil Santos

Publicado em 29 de março de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/ CORREIO

Enquanto muita gente está em casa cumprindo o isolamento social, eles correm para cima e para baixo carregando de tudo. Os entregadores estão entre as poucas categorias que se mantêm na rua nessa época de pandemia para atender pedidos de empresas e clientes. E é cada coisa que eles entregam...

Há algumas semanas, Edil Neri, 46 anos, ou simplesmente Chiclete, como é conhecido no Matatu de Brotas, foi chamado para fazer uma corrida. O pedido veio de um prédio, na Pituba, onde uma mulher aguardava com sete malas. Ele estacionou o carro e ajudou a moça a colocar toda a bagagem no veículo. “Ela parecia meio nervosa e depois que entrou no carro vi que estava chorando”, contou.

O destino era Alphaville. “Eu pensei até que a gente iria para o aeroporto por conta da quantidade de malas. No caminho, o telefone dela tocou e entendi tudo, ela tinha brigado com o namorado”. Mas o moço era bom de conversa e a mulher acabou perdoando o amado antes de terminar a viagem.“A gente já estava entrando em Alphaville quando ela pediu para voltar. Tivemos de tirar as malas todas de novo na Pituba. Eu achei a história engraçada porque o que era para ser uma corrida comum virou uma viagem de conciliação e de amor”, disse.Chiclete conta que começou a fazer entregas, de gente, animais e objetos, há três anos. Antes, ele passou sete anos como coordenador de logística em uma livraria. A empresa precisou enxugar o quadro de funcionários e o trabalhador perdeu o emprego. Foi então que ele teve a ideia de comprar um carro e virar entregador.   Chiclete transporta sonhos e sentimentos nas corridas (Foto: Acervo Pessoal) O dia começa às 6h, quando ele se despede da mãe e de um irmão que tem deficiência e vai para mais um dia de trabalho. O primeiro cliente é fixo, um rapaz que mora em Brotas e trabalha no Rio Vermelho. Depois disso, Chiclete está à disposição do aplicativo, de empresas com as quais tem parcerias para entregas e de clientes individuais.

Em uma das corridas, ele recebeu a missão de levar um bolo de Brotas para o Imbuí, mas tinha um detalhe, o bolo era de aniversário e a festa era surpresa. “Eu tinha que ser discreto senão estragava tudo. Cheguei à portaria e avisei que estava com a ‘encomenda’ e uma moça desceu para buscar, toda contente”, contou.

Outro episódio que não sai da sua memória foi uma corrida para Itinga, em Lauro de Freitas, que terminou em lágrimas. A passageira estava com muitas sacolas e na hora de descer esqueceu uma coisa. Chiclete também não percebeu o que tinha ficado no banco de trás do carro e seguiu viagem, mas precisou parar para abastecer, foi quando ele viu algo se mexendo.“Era o cachorro dela. Um filhote. Ela estava tão agoniada que esqueceu o bichinho. Eu já estava na Paralela, mas abasteci o carro e voltei para ver se ainda encontrava a moça. Quando eu cheguei, por sorte, ela ainda estava no mesmo lugar, chorando. Ficou muito feliz quando viu o cachorro de novo, e agradeceu muito”, disse.Na semana passada, ele recebeu a missão de ir até um supermercado pegar as compras e levar para a casa de uma cliente. A mulher, uma idosa, estava usando máscara quando abriu o portão. Ela contou que mora sozinha e estava com medo de sair por conta do novo coronavírus. Ficou tão agradecida pelo serviço que ofereceu um cafezinho, mas Chiclete recusou. Naquele dia, ele voltou para o carro pensando na mãe dele.“Ela é idosa também, e teimosa. Quer fazer tudo sozinha. Eu estou tomando o máximo de cuidado para proteger ela e meu irmão. Uso máscara, tenho álcool em gel no carro e quando chego em casa vou logo tomar banho para poder trocar de roupa. A gente fica com medo, mas vai ser assim até diminuir essa contaminação”, afirmou.O número de corridas caiu tanto por app quanto nas chamadas avulsas. O trabalhador acredita que esse é mais um efeito da Covid-19, porque o medo de contrair a doença tem feito pessoas cancelarem eventos e evitarem contato com o que vem de fora de suas casas. Até a semana passada, o Sindicato dos Motoristas por Aplicativo estimava queda de 30% no faturamento.

Quem faz entregas, seja de carro, moto ou bicicleta, tem é história para contar. Chiclete lembra de uma vez em que foi chamado para levar doações de roupas de uma empresa para um abrigo, no bairro do Uruguai, da emoção das pessoas em receber os presentes. E da vez em que um passageiro descobriu no aeroporto que tinha esquecido uma das malas em casa, em Brotas. “Deixei ele e voltei correndo para pegar. Atravessei a cidade, mas deu tempo”, disse.

A lista de objetos levados de um ponto para outro é enorme: cadeiras, documentos, quadros, chaveiro e até caixa de ferramenta de mecânico. Essa semana recebeu um pedido desesperado de uma cliente. Ela tinha encomendado canecas para um evento que estava fazendo em casa e o motoboy que ficou de levar os produtos desistiu faltando 50 minutos para começar a reunião. “Foi corrido, mas consegui entregar a tempo. Ela me agradeceu bastante e eu fiquei feliz em poder ajudar”.

Se para algumas pessoas esses trabalhadores estão carregando apenas malas, bolos, compras, clientes e cachorros, para outros eles transportam mais que isso. Nesse momento de crise e de isolamento social, os entregadores levam afetos, esperanças, sentimentos, e até mesmo sonhos.

*O Salvador Unida é uma iniciativa do Jornal CORREIO em parceria com o Sebrae, apoio institucional da Prefeitura de Salvador e apoio do Fecomércio, Sotero Ambiental, Acomac, Salvador Bahia Airport, Fieb, Hapvida, Ademi, Viltalmed, Intermarítima, Claro, Hapvida e Hospital da Bahia.