Em busca da nostalgia perdida

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  • Paulo Sales

Publicado em 9 de março de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Chama-se madeleine o singelo bolinho que, mergulhado numa xícara de chá, faz emergir do esquecimento a profusão de reminiscências do narrador de Em Busca do Tempo Perdido, clássico de Marcel Proust. O sabor da madeleine evoca sentimentos, vozes, encontros, cores e texturas de uma época até então adormecida.

Segundo um grande amigo, dotado de um senso de humor particularmente incisivo, o cheese-salada do Puppy é a minha madeleine. Explico: o Puppy é um boteco sem maiores virtudes aos olhos desavisados de quem passa pela Avenida Paulista no início de uma noite qualquer. Para mim é um território sagrado. Durante cinco anos, em meados dos anos 90, foi meu pequeno paraíso particular à sombra das moças em flor. Um lugar ao qual retornava quase diariamente, depois de sair da faculdade de jornalismo ali em frente, em busca do prazer perdido.

Iguaria prosaica servida com presteza e simpatia por garçons que se tornaram amigos, o cheese-salada era um desses prazeres. Seu sabor evoca não apenas lembranças adormecidas, mas também sentimentos, vozes, encontros, cores e texturas que guardo com carinho na memória. Como o provolone à milanesa, a cerveja invariavelmente gelada e as conversas intermináveis, que se estendiam até sermos expulsos ou – honraria suprema – convidados para a área interna do Puppy, onde continuávamos nos embriagando enquanto os funcionários se arrumavam para ir embora.

Mas São Paulo deixou muitas outras marcas na minha trajetória. É uma cidade à qual retorno – como retornei no último Carnaval – com o intuito primordial de dar asas à nostalgia. Como se, ao passar pela dura poesia concreta daquelas esquinas, eu reencontrasse um pouco de quem fui. Revejo amigos queridos, reencontro sabores pelos quais nutro imensa saudade, caminho por ruas que guardam afetos, sorrisos, epifanias.

Num desses passeios rumo ao passado, fui com minha filha à pizzaria Speranza para me deliciar mais uma vez com a margherita que só eles fazem. De lá andamos pelo Bixiga. Passamos pelo prédio onde morei, pela banca onde comprava as enormes e pesadas edições dominicais da Folha e do Estadão e pelo viaduto sob o qual funcionava a feirinha onde comia pastel com caldo de cana.

É um afeto estranho esse que nutro por uma cidade sem beleza, caótica, agressiva, cujo clima sombrio (fazia frio em fevereiro) destrói qualquer possibilidade de vida harmoniosa para um baiano louco pelo mar. Mas que, por outro lado, me possibilitou o prazer sensorial de contemplar cidades abstratas nas telas de Antonio Bandeira, a estranheza engenhosa de Takashi Murakami, o concretismo em imagens na poesia de Haroldo de Campos ou a enorme carga emocional do futebol como manifestação de arte e identidade de um povo.

Quanto ao Puppy, confesso que cometi um ato de infidelidade: pela primeira vez, em mais de duas décadas, não sentei numa de suas mesas para tomar uma cerveja, comer um cheese-salada, contemplar a Paulista e ver a vida dos outros passar. Ele foi trocado por uma nova paixão, mais jovem e sofisticada, que atende pelo nome de Le Jazz. Mais apropriada a um homem de meia-idade do que um boteco frequentado por universitários.