Em 'Menos que Um', Patricia Melo retrata universo de moradores de rua

Escritora veio a Salvador para divulgar novo romance

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  • Roberto Midlej

Publicado em 2 de junho de 2022 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: foto: Marcelo Tabach

A escritora paulista Patricia Melo está em Salvador para divulgar seu romance mais recente, Menos que Um (Leya), que aborda o universo de pessoas que vivem nas ruas de São Paulo. A ideia de escrever este livro começou há dois anos, quando ela esteve na capital paulista e se impressionou com o aumento da população de rua.

"Faz tempo que queria trabalhar a temática  desta miséria profunda em um romance. Partindo deste conceito que o Walter Benjamin chama de 'mera vida' e Giorgio Agamben chama de 'vida nua'. É esta vida destituída de valor, totalmente desconsiderada e desassistida pelo Estado", revela a autora.

Patricia começou como roteirista de TV, mas foi escrevendo romances que ela se consagrou e hoje é uma das mais importantes escritoras brasileiras, com livros publicados e reconhecidos também fora do país. Foi muito bem recebida pela crítica brasileira em sua estreia, com Acqua Toffana (1994).

A consagração definitiva veio com O Matador (1995), que foi traduzido para 16 idiomas. Pelo livro, ganhou prêmios na Alemanha e na França. No Brasil, venceu o mais importante prêmio nacional, o Jabuti, na categoria romance, por Inferno (2000), uma continuação de O Matador.

Patricia veio a Salvador para divulgar Menos que Um e também para acompanhar o marido, o maestro John Neschling, com quem vive na Suíça. Neschling veio à cidade para reger a Neojiba numa apresentação, a convite do diretor da orquestra, Ricardo Castro. Hospedada num hotel do Centro da cidade, a escritora, acompanhada de seu yorkshire Schlomo, recebeu o CORREIO.

Por que decidiu ter como protagonistas de seu romance pessoas que vivem na rua?

Acompanho o trabalho de Padre Julio Lanceloti e acho ele um exemplo de atuação no que diz respeito a essa população desamparada. Ele disse e falo isso  no meu livro: as pessoas têm a ilusão de que a vida na rua é vida de desocupados. Mas a vida na rua é de muito trabalho. Se você olha pra situação dessas pessoas e não faz nada, você desacredita totalmente em você. Se você não se angustia nem toma uma atitude, você desacredita em você como cidadão, como ser humano. Por isso, as pessoas desviam o olhar. Pra fingir realmente que não é com elas.

Alcides, um dos personagens de Menos que Um, diz a frase "Cansei de ser bonzinho. O Brasil obriga a gente a ser ruim". Você concorda com ele?

Em vários aspectos, sim, dou razão a Alcides. Inclusive, mostro isso no romance no que diz respeito às burocracias para se tornar um cidadão. Veja como o Estado dificulta sua vida. Vivo num Estado sem burocracia [Suíça, há cerca de dez anos]. Mas sinto que o Brasil te "engessa", tudo é difícil de se fazer aqui. É difícil viver aqui, sobretudo nesta gestão. Veja o caso dos artistas. O único personagem do mundo artístico que existe na história é o Escritor, que coloquei na rua, como observador. Mas é um retrato também de como este atual governo enxerga os artistas: retira completamente o valor das artes e dos artistas, como se isso não fosse importante para a nação, enquanto identidade e expressão de seu multiculturalismo. Quando diz essa frase, Alcides está dizendo: "O Brasil não é fácil".Como você estrutura sua vida com esse índice de desemprego e essa ausência de política do Estado e esse culto à morte? É isso que Alcides está dizendo: que é difícil você se manter íntegro e cultivar sua vida dessa forma [num cenário desses].Em Menos que Um, algumas pessoas deixam suas casas em um condomínio de classe alta e os imóveis ficam sujeitos ao abandono e a invasões. A impressão, para quem lê, é de um cenário meio distópico nesse e em outros momentos do livro.

A gente percebeu isso [a debandada de brasileiros] na Europa, com a quantidade de brasileiros que se mudou para Portugal. É uma imagem distópica mesmo. O Brasil vive seu momento mais trágico e vivemos de fato um momento distópico. E a gente percebe isso porque uma das características mais marcantes da distopia é a falta de esperança. E é o que senti muito na pesquisa para o livro: pessoas sem perspectivas, assistindo a esse desmonte do país. Na área econômica, social, cultural...

Seus livros dão uma sensação de pessimismo muitas vezes. Mas você se considera pessimista?

Não me considero otimista, mas tento controlar meu pessimismo. Mas nesse livro especificamente tento, através de alguns personagens, mostrar que é possível uma redenção, uma esperança, como Jessica e o Escritor, porque a vida fica muito difícil se você se assume como pessimista. A esperança é o motor de sua rotina, de seus projetos.Tento não desacreditar completamente no Brasil, mas é difícil, né? O país não contribui (risos).Você já disse em uma entrevista que "o estilo é a morte do escritor". Tem receio de se tornar "escrava" de seu estilo?

Joseph Brodsky, um poeta russo de que gosto muito e a quem devo o titulo deste livro, diz que todas as profissões têm em comum esse acúmulo de experiências e de know-how, menos a de escritor. O escritor, se quer fazer um trabalho sério, tem que abrir mão dessa experiência que acumula, tem que correr riscos. Porque, caso contrário, ele cria um estilo que se torna uma espécie de jaula para ele. Tenho tentado, a cada romance, abrir mão [de se submeter ao estilo]. Neste romance, tem uma narrativa caleidoscópica.O livro tem vários protagonistas e com essa gama de personagens, você conta a história. Mas não tem protagonista. Tem o Chilves, catador, que é a figura central do grupo, mas é um dos personagens.