Em nome de todas as crianças, eu reivindico recreio online 

Enquanto algumas escolas particulares lutam pela reabertura jurando que se preocupam com a saúde mental e "sociabilidade dos alunos", penso "enfim, a hipocrisia"

  • Foto do(a) author(a) Flavia Azevedo
  • Flavia Azevedo

Publicado em 13 de setembro de 2020 às 11:35

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Nas escolas particulares, o lado "ruim" já voltou todinho. Aula, prova, notas, professora pedindo silêncio, despertador tocando cedo e o escambau. Tá quase igual. Tem até avaliação de "postura social", ou seja: participação nas aulas, frequência, uso de uniforme, comportamento, saber a hora de falar. E de fazer silêncio que é o mais difícil e o que mais tem sido pedido às crianças, durante as aulas online. Tudo faz parte, mas é mais fácil de dar conta quando se tem o outro lado que tá em falta.

Se tá complicado pra professor, imagine pra aluno. Nenhum olhar pro colega, zero cumplicidade, nenhuma traquinagem, sem chance de conversa paralela, conteúdo na veia e esse discurso 100% vertical. Quando se fala em heroísmo, escolho reconhecer o esforço do meu filho que tem nove anos e há seis meses não encontra, pessoalmente, com ninguém da própria idade. Virtualmente, sim, mas com certa dificuldade porque, como você sabe, aos nove anos a pessoa não deve ter redes sociais nem anda trocando figurinhas, vídeos e áudios em grupos de Whatsapp. 

São inúmeros na mesma vibe. A maioria, provavelmente, cercada por adultos estressados. E enquanto algumas escolas particulares lutam pela reabertura jurando que se preocupam com a saúde mental e "sociabilidade dos alunos", penso "enfim, a hipocrisia" e prefiro uma ação mais segura e imediata: em nome de todas as crianças, eu reivindico recreio online. Que foi a única coisa que não voltou, na qual ninguém pensou. Precisamente, o que não foi recriado no ambiente virtual. A escola veio para a virtualidade deixando pra trás, exatamente aquilo que dizem, agora, fazer mais falta: o encontro, a troca - imprescindível - horizontal. Uma lógica atravessada que me leva, outra vez, a pensar sobre o lugar que ocupam as crianças na nossa esquisitíssima pirâmide social.

(Suspiro aqui e viro os olhinhos pra quem acha que são as mais privilegiadas)

(É, exatamente, o contrário)

A escola deve atender à criança. É isso, em teoria. Esta que é outra, na prática. Na prática, crianças demandam relações sociais mais do que demandam conteúdo. Principalmente entre elas, fique claro. Na prática, agora, importa menos a tabuada do que saber como a turma está vivendo esse momento especial. E essa troca só se dará sem condução, sem comando, sem levantar a mãozinha pra falar. Entre crianças, na linguagem das crianças, atropelando a fala do outro, falando assunto de criança, do jeito que criança sabe falar. Igual ao que acontece nos recreios, enquanto a professora olha distraída pro outro lado.

É claro que online jamais será igual às brincadeiras de empurra, corre e cai. Mas é o que temos para este momento em que tudo parece arremedo, só que já é real. Também a aula de matemática não é a mesma e nem por isso ela ficou fora do cronograma virtual. As avaliações, então, nem se fala. Não falta tecnologia, mas dar prioridade. Se em sua cabeça ronda o pensamento de que isso é bobagem - talvez até meio ridículo - eu acho que você não tem criança em casa. Se tem, é mais grave: você ainda não entendeu nada. 

A escola, como era, acabou. Não vai voltar. Na melhor das hipóteses, num futuro, algo parecido com aquilo que já foi. A transição está sendo feita, o ensino híbrido é a realidade mais provável para um possível retorno, adiante. Tudo está sendo reconfigurado, mas em um modelo que, simplesmente, ignora a interação horizontal. Sim, é mais prático, claro. Mas não presta. As crianças precisam fazer a transição juntas, trocando figurinhas, se adaptando como "turma" ao futuro que virá. E isso é na escola que se faz. São os colegas que estarão usando máscaras nas cadeiras ao lado e não o vizinho com três anos a mais. É preciso manter a intimidade. Dá pra resolver? Basta querer que dá.

Uma hora livre, por dia, na mesma plataforma das aulas. Livre. Sem condução. Em contraturno. Pra brincar. Sem presença obrigatória, sem "proposta". É só abrir a sala e viabilizar. Sim, precisa ser monitorado. Principalmente para observar habilidades sociais, comportamentos estranhos, ou seja, para que a escola - também virtualmente - cumpra seu papel de espaço de aprendizado extra curricular. Não é difícil a logística disso. Difícil talvez seja apenas a empatia dos adultos que podem estar achando bem confortável viver, na prática, a teoria de "separar para dominar".